SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em um Chile já polarizado e com dificuldades de formar consensos, uma proposta colocada na mesa pelo presidente Gabriel Boric no marco dos 50 anos do golpe de Estado no país se tornou pano de fundo de trocas de farpas entre governo e oposição.
O governo anunciou que pretende derrubar o sigilo de 50 anos imposto ao informe que compila mais de 28 mil casos de vítimas da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). A ideia não é recente, mas, encampada pelo governismo, despertou ainda mais rechaço na oposição.
Segundo detalharam ministros de Boric em Valparaíso, a proposta é derrubar o sigilo de maneira parcial -apenas a Justiça poderia acessar os testemunhos, não o público em geral, e somente mediante o consentimento da vítima ou de um familiar seu, caso esteja morta.
Hoje, as vítimas da era Pinochet que compartilharam seus relatos à Comissão Nacional de Prisão Política e Tortura -mais conhecida como Comissão Valech, devido ao bispo Sergio Valech, que a coordenou- têm, em média, mais de 70 anos de idade.
O sigilo sobre o conteúdo do informe originado pelos trabalhos do grupo criado em 2003 foi determinado pela Lei 19.992, de dezembro de 2004, sob o argumento de proteger a privacidade das vítimas, muitas das quais, segundo autoridades da época, não desejavam que seus relatos fossem de conhecimento público para sempre.
Mas a medida também foi e é alvo de críticas, inclusive de ex-presos políticos do regime Pinochet que testemunharam à comissão. “Nosso objetivo, ao testemunhar, não era ocultar a verdade do povo, mas sim combater a impunidade”, diz Cecilia Bottai, 73, cirurgiã-dentista que foi presa e torturada na Villa Grimaldi, um dos principais centros de tortura em Santiago, onde sofreu um aborto devido às agressões.
O anúncio do governo Boric de que pretende mais uma vez tentar derrubar o sigilo vem na esteira do plano nacional de buscas lançado no final de agosto para buscar desaparecidos políticos do regime. O presidente e seus ministros argumentam que, ao acessar os testemunhos mediante autorização das vítimas, a Justiça estará munida de mais detalhes para fazer um trabalho bem-sucedido.
“Isso tem de ser feito com o consentimento explícito daqueles que testemunharam”, disse Boric em entrevista ao jornal chileno Teletrece no último dia 3. “E será especificamente para casos judiciais. Ninguém que testemunhou e queira manter seu relato confidencial será obrigado, forçado ou pressionado a levantar o sigilo.”
O desafio do governo, no entanto, é fazer aprovar a quebra do sigilo. Após cogitar um decreto para estabelecer a medida, a gestão Boric recuou e anunciou que elaboraria um projeto de lei que terá de ser aprovado pelo Congresso -onde o governo de centro-esquerda não tem maioria nem na Câmara, nem no Senado.
O próprio presidente, quando ainda era deputado, apoiou proposta similar à que hoje tenta colocar em prática. Em 2016, Boric foi um dos congressistas que assinaram PL do então deputado Hugo Gutiérrez Gálvez para permitir que a Justiça acessasse o conteúdo do informe.
“Isso gera uma contradição com os mecanismos institucionais que buscam estabelecer uma verdade oficial em matéria de violação de direitos humanos”, dizia a proposta. O texto está travado no Congresso, e não se descarta a possibilidade de que o governo o reviva.
Publicado em 2004, o primeiro relatório da comissão, conhecido como Valech 1, reconheceu cerca de 28,5 mil vítimas da ditadura. Depois, um segundo informe, o Valech 2, compilou informações sobre outras cerca de 10 mil vítimas de prisões ilegais, torturas, execuções e desaparecimentos da era Pinochet.
Para o governo, derrubar parcialmente o sigilo do material é também uma chance de combater o negacionismo histórico. “Em dias nos quais se fala que a violência sexual contra as mulheres detidas nos centros de tortura é uma lenda urbana, seria bom lembrar que mais de 3.000 mulheres disseram terem sido vítimas dessa violência”, disse a ministra Antonia Orellana durante o anúncio do projeto.
A fala da titular da pasta de Mulheres e Equidade de Gênero faz uma referência a discurso recente da deputada independente Gloria Naveillán, que afirmou que a violência de gênero durante o regime não podia ser comprovada.
A oposição afirma que Boric está desrespeitando a vontade das vítimas. “Está traindo todas as pessoas que falaram à comissão por conta a confidencialidade. Nem as famílias [das vítimas] teriam direito de passar por cima do que um antepassado disse”, afirmou à rede CNN local a deputada Ximena Ossandón, do direitista Renovação Nacional.
Caso a proposta de fato se formalize no Congresso, esse será mais um teste para o presidente Gabriel Boric, que enfrenta dificuldades para aprovar suas agendas e amargou dura derrota quando viu ser recusado nas urnas o texto proposto para uma nova Constituição, há um ano.
A última pesquisa do instituto local Cadem, realizada de 30 de agosto a 1º de setembro, mostra o líder com aprovação de apenas 29%.
MAYARA PAIXÃO / Folhapress