Branquitude é posta em xeque em romance sobre homem que acorda negro

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O que você faria se fosse uma pessoa branca e, de uma hora para a outra, acordasse negra? E se, nos lugares que sempre frequentou, agora fosse observada com um olhar desconfiado?

Essa é a premissa de “O Último Homem Branco”, ficção do escritor paquistanês Mohsin Hamid. Na história, Anders é um homem branco comum. Ele trabalha, vive um romance com Oona e visita o pai algumas vezes ao mês, até que acorda com a pele escura e tudo muda de repente.

O fenômeno começa a se repetir com outros moradores da cidade e, pouco a pouco, transforma a tonalidade da pele de todos, numa revolução que causa tristeza, repulsa, confusão e até agressões contra aqueles que se tornam negros.

O sentimento vivido pelo personagem foi inspirado na experiência de Hamid, que também já publicou “Passagem para o Ocidente” e “Como Ficar Podre de Rico na Ásia Emergente” em português.

A formação em uma faculdade de elite e a boa condição financeira do escritor o blindaram do racismo ao longo dos anos em que morou em Nova York. De acordo com Hamid, ele vivia uma vida confortável, mesmo não sendo branco e tendo um nome muçulmano.

Depois do 11 de Setembro, tudo mudou. “As pessoas começaram a ficar desconfiadas e passei a ser parado no aeroporto e na imigração. Quando eu sentava no metrô ou no ônibus, elas se levantavam e trocavam de lugar. Eu não mudei, mas todo mundo estava olhando para mim de uma nova maneira”, diz, em videoconferência, do Paquistão.

O escritor passou a refletir sobre como a raça é usada para hierarquizar pessoas nas Américas, em uma lógica na qual alguns são vistos como seres humanos legítimos e outros precisam provar sua humanidade.

“Ser branco significa que você é humano. Não ser branco significa que talvez você seja humano, mas precisará provar”, diz. Em lugares como o Paquistão, segundo ele, não é a raça que determina isso, mas a religião.

Essa desumanização é vivida por Anders, que sente repulsa de si mesmo ao perceber-se negro. Após ser visto pela primeira vez por Oona, passa a ser evitado por ela. Já seu pai, apegado à perfeição, chora ao ver o filho maculado, tão diferente de quando se parecia com a falecida mãe.

Embora a cidade onde se passa a história tenha pessoas negras de nascimento, a narrativa se constrói a partir da perspectiva dos moradores brancos, que lidam com o medo de pouco a pouco passarem de opressores para oprimidos, com o pavor de serem os próximos a acordarem com a pele escura e lidarem com a crueldade de seus próprios preconceitos.

Anders percebe, por exemplo, que nunca havia conversado com o responsável pela limpeza da academia onde trabalha —um homem negro— e que nem sequer buscou saber o nome do colega até também ter a pele escura.

“Eu estava muito fascinado e atraído pela ideia de imaginar esses personagens brancos vivenciando essa transformação e pude colocá-los como vítimas e executores de sua própria presença”, contou Hamid.

O autor já foi questionado sobre a ausência da perspectiva de personagens nascidos pretos ou pardos no livro, o que disse ter sido intencional.

“Se eu criasse um personagem principal pardo ou preto, o público iria ouvir seus pensamentos e falas e então diria, é isso que eu deveria sentir. Por não ter nenhum personagem assim no livro, não há ninguém para quem o leitor olhe. Ele precisa sentir o que sente por si mesmo.”

Dessa forma, falas, pensamentos e comportamentos racistas, ou mesmo emoções humanas como o medo do novo, a insegurança e o luto podem ser entendidos pelo leitor a partir de sua própria vivência. Hamid traz como referência “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago.

Outra ferramenta do autor foi o texto, de leitura desafiadora. Sua escrita traz um ritmo acelerado que mistura narração, pensamentos e falas, todos separados por vírgulas em grandes parágrafos.

“Quando as palavras dizem algo com o que você pode discordar, é provável que simplesmente concorde se o ritmo o está levando adiante”, afirma. Em um romance sobre temas desconfortáveis como raça e racismo, o escritor opta por construções longas, como quem diz “continue em frente”.

“No final da frase, o leitor pode pensar: ‘Espera, eu discordo de algo dito duas linhas antes’, mas agora já passou e ele já seguiu”, argumenta.

A todo momento, a narrativa questiona o sentido de se estruturar uma sociedade com base na cor da pele. “Será que isso quer mesmo dizer alguma coisa?”, parece ecoar o romance. Para Hamid, sua origem paquistanesa o ajuda a entender o conceito de raça como uma simples invenção humana.

“É uma espécie de ilusão na qual escolhemos acreditar. Uma vez que você acredita nela, pode matar alguém por sua raça. Você pode escravizar alguém pela raça, mas esse poder vem de uma ilusão. O que acontece se desestabilizarmos isso?”

Considerado um dos melhores romances do ano passado segundo a revista New Yorker, o livro fala ainda sobre como manter a dignidade. Quando ser branco pode deixar de ser uma vantagem, a sensação de derrota gera violência e até mobilização política, como a dos supremacistas brancos.

“Donald Trump parte dessa raiva, mas essa não é a única resposta. Há algo sobre encontrar dignidade diante da perda e se deixar ir de maneira honrosa. O último homem branco do romance está lutando exatamente com esse tipo de questão.”

O ÚLTIMO HOMEM BRANCO

Preço R$ 69,90 (134 págs.); R$ 37,90 (ebook)

Autoria Mohsin Hamid

Editora Companhia das Letras

Tradução José Geraldo Couto

PAOLA FERREIRA ROSA / Folhapress

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