SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em mais uma batalha na guerra simbólica que acompanha o conflito militar com a Rússia, a Ucrânia substituiu neste domingo (6) o brasão soviético da maior estátua de Kiev pelo tridente que representa o país.
O monumento em questão é conhecido desde o fim da União Soviética, em 1991, como Mãe Ucrânia. Havia sido inaugurado dez anos antes, quando o país integrava o império comunista, com o nome Pátria-Mãe, e traz uma guerreira de 102 metros de altura feita em aço inoxidável, carregando uma espada e um escudo para celebrar a vitória na Segunda Guerra Mundial.
Como era a prática nos tempos soviéticos, o brasão com a foice e martelo simbolizando o comunismo estava em destaque no escudo. Na semana passada, ele foi arrancado. Neste domingo foi feita a instalação do Trizub, o tridente que desde o século 10 simboliza o governo centrado em Kiev, representando a Santíssima Trindade entronizada pela cristianização da região.
Ao longo da história, o tridente foi recuperado como símbolo nacional ucraniano, dado que as antigas terras controladas pelo país foram dando lugar a domínios de Moscou. A integração da Ucrânia à União Soviética em 1922 suprimiu o Trizub, que foi adotado no brasão nacional do país após sua independência, em 1991 um processo que foi central para a dissolução comunista.
Desde então, há constante tensão entre Moscou e alguns dos 14 Estados que compunham a união quando o tema é a memória soviética. Particularmente na era Valdimir Putin no poder, a partir de 1999, houve uma verdadeira sacralização da vitória contra os nazistas, que custou 27 milhões de vidas de Moscou.
Ao menos 8 milhões delas eram ucranianas, 6 milhões civis. A então república soviética foi uma das áreas em que houve alguns dos mais intensos combates durante a invasão nazistas e o contra-ataque de Moscou. Com efeito, 4 das 12 chamadas “cidades heroicas” soviéticas são ucranianas, Kiev incluída. Todas estão homenageadas em um monumento ao lado do Kremlin.
Aqui as encruzilhadas históricas se complicam. Assim como nos Estados Bálticos, a invasão nazista foi apoiada por grupos que se opunham ao controle soviético. Já na Alemanha, os símbolos na porção comunista do país na Guerra Fria seguem de pé. Na Ucrânia, o movimento fascista era particularmente forte, e essa associação permeia o conflito atual.
Desde o fim da União Soviética, figuras associadas àquela resistência foram recuperadas. É notória a inspiração neonazista de grupos como o Batalhão Azov, unidade que serve às Forças Armadas ucranianas.
Se isso não significa que Volodimir Zelenski, de resto um judeu que teria sido exterminado pelos alemães nos anos 1940, lidera um Estado neonazista como disse Putin na justificativa de sua invasão, certamente não ajuda muito do ponto de vista de imagem. No Ocidente, o apoio militar a Kiev evita falar no tema.
Assim, símbolos da vitória soviética acabaram sendo associados à mão de ferro de Moscou, em especial na Ucrânia, onde a fome dos anos 1930, o Holodomor, é considerada uma tentativa genocida do ditador Josef Stálin que apenas tem na guerra atual uma continuação lógica. Historiadores divergem sobre a motivação de Moscou, com muitos vendo mais um erro logístico crasso do que uma ação direcionada.
De forma previsível, Moscou reage ao revisionismo, associando-o a instintos neonazistas. Foi assim na Letônia, ex-república soviética com grande comunidade russófona, quando o governo derrubou estátuas celebrando a vitória na Grande Guerra Patriótica, como a Segunda Guerra Mundial é chamada na Rússia.
A tensão permeia o campo de batalha, também. Para diferenciar seus tanques e blindados dos russos, que usam o mesmo material de origem soviética, Kiev pinta cruzes brancas ao lado de seu equipamento militar que remetem àquelas usadas pela Wehrmacht, o Exército de Hitler.
IGOR GIELOW / Folhapress