Brasil, convidado de honra no Festival de Avignon, leva radicalidade de conto pornô

AVIGNON, FRANÇA (FOLHAPRESS) – A Idade Média é mais do que uma lembrança em Avignon, cidade que fica a cem quilômetros de Marselha, no sul da França. O medievo está na arquitetura dos castelos e das catedrais, em pontes erodidas pela ação do tempo e nos muros, que agora já não separam a cidade do resto do mundo. O verão chegou, a sensação térmica passa dos 40ºC e as ruas estão apinhadas de gente de todas as nacionalidades, porque o espetáculo já vai começar.

A 79ª edição do Festival de Avignon, um dos mais importantes do mundo dedicado às artes cênicas, se inicia neste sábado (4), transformando a cidade de 90 mil habitantes em um centro nervoso do teatro. Por duas semanas, Avignon deixa de ser cenário do passado para encenar o contemporâneo, com milhares de peças que tematizam um tempo de guerras e de catástrofes ambientais.

Neste mesmo contexto, o Brasil surge como convidado de honra do “Off”, a mostra paralela, com 11 companhias que fazem jus ao mote da edição, “ensemble”, ou juntos, uma aposta na diversidade e na ação coletiva das artes cênicas brasileiras.

“É uma oportunidade que tem mobilizado toda a nossa equipe. Por um lado, a escolha do Brasil mostra como nosso teatro é potente, mesmo com toda precariedade”, afirma Janaína Leite, atriz, diretora e dramaturga, que leva ao festival “História do Olho: Um Conto de Fadas Pornô Noir”, peça inspirada no livro homônimo do francês Georges Bataille, de 1928.

Com o espetáculo, Leite dá sequência à incorporação da pornografia pelas artes cênicas, uma investigação que chocou as plateias nos últimos anos. Treze atores-performers recontam as aventuras eróticas de um adolescente que namora sua prima distante Simone. Consumadas as primeiras relações sadomasoquistas, o casal chama Marcelle para o relacionamento, e esse trio passa a organizar orgias com outros adolescentes.

Numa delas, Marcelle tem um colapso mental e termina em um sanatório. Por isso, o rapaz foge da vila onde morava e inicia desventuras em série, numa narrativa cada vez mais explícita. Em cena, os atores interpretam vários personagens e mesclam a história do romance a passagens de suas próprias biografias.

Afinal, alguns deles são atores pornôs. É o caso de Lucas Scudellari, estrela da pornografia gay. Perto das cenas criadas por Leite, que dirige a peça e faz uma participação como atriz, os espetáculos do Teatro Oficina são até pudicos.

“Você sabe o que é ‘fisting’?”, ela pergunta ao repórter. Em “História do Olho”, Leite concebeu uma cena, em que uma artista distribui luvas para a plateia e convida um dos espectadores a penetrar sua vagina com as mãos, configurando a prática do “fisting”, como dizem em inglês. A diretora diz que tudo é feito de modo poético e que a plateia chega a ligar a lanterna dos celulares, como num show.

Em outro momento da peça, os atores são içados por ganchos inseridos na pele, numa prática chamada suspensão corporal, que combina bem com o medievalismo de Avignon. É comum que, nessas horas, haja sangue espalhado no palco.

Leite é uma das artistas mais radicais do país. Seu nome despontou na virada do século, como integrante do Coletivo 19, que se notabilizou por montagens políticas em edifícios abandonados e em casarões históricos.

Em 2019, tornou-se conhecida em todo o país, montando a peça “Stabat Mater”. Nela, protagonizou uma cena de sexo ao vivo com um ator pornô e convidou sua mãe para dirigi-la. Ela afirma que suas peças não têm o objetivo de chocar. A pornografia, diz, é uma linguagem cênica contemporânea por excelência, porque une o real à representação.

“O problema que tenho é a censura institucional. Meus trabalhos não entram no Sesc e quase nunca no Itaú Cultural”, diz. Entre as peças brasileiras, se destacam aquelas que, a exemplo de ‘História do Olho’, integram a Plataforma Brasil. A iniciativa reúne obras escolhidas pela Mostra de Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp, para representar o país no exterior.

É o caso de “Bola de Fogo”, performance de Fábio Osório Monteiro, que prepara acarajés no meio da rua vestido de baiana, enquanto repassa sua história. Já o coreógrafo e bailarino Leandro Souza leva a dança para Avignon em “Eles Fazem Dança Contemporânea”, explorando as tensões sobre a presença negra na cena atual. Ainda na Plataforma Brasil, a indígena Zahy Tentehar, que no ano passado venceu o prêmio Shell de melhor atriz, protagoniza a peça “Azira’I – Um Musical de Memórias”.

“Ela quebra uma expectativa que o europeu ainda tem de nós, como se pudéssemos ainda responder a um fetiche pelo exótico”, diz Antonio Araujo, curador da MITsp. “É um trabalho de alto nível em que a atriz fala de sua vida, e não dos indígenas em geral.”

A homenagem ao Brasil no circuito “Off” também é parte da temporada Brasil-França, que celebra os 200 anos de relações diplomáticas entre os países. Com 300 eventos culturais, a iniciativa surgiu de um acordo firmado há dois anos pelos presidentes francês e brasileiro. “Quero levar para a França o Brasil além do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, porque o francês, quando vem para cá, vai sobretudo para o Rio de Janeiro”, afirma Emilio Kalil, o curador da temporada. “Desejo mostrar essa diversidade.”

Fundado em 1947, o Festival de Avignon nasceu como uma semana de artes cênicas, organizada pelo ator e diretor Jean Vilar, que naquele ano montou clássicos e peças desconhecidas. Hoje, além dos artistas, o festival, mantido pelo estado francês, é o ponto de encontro de programadores do mundo inteiro, atento às tendências da cena e às discussões políticas ali anunciadas.

Como não poderia ser diferente, a edição deste ano busca resgatar a coletividade do teatro como forma de enfrentamento às guerras do mundo. Não por acaso, a língua convidada da edição é o árabe, o que se reflete na mostra oficial, conhecida como “In”, composta por 42 espetáculos e 300 eventos, espalhados por 40 lugares da cidade.

“Organizamos uma programação para discutir o mundo de hoje, mas queremos fazer um festival em que os artistas árabes não sejam obrigados a falar de guerras”, diz o português Tiago Rodrigues, curador do festival. “Damos a liberdade para que eles tratem do assunto que quiserem.”

Nessa seara, chama atenção o espetáculo multimídia “Quand J’ai Vu La Mer” —quando eu vi o mar, em português—, criado pelo libanês Ali Chahrour, que trata dos fluxos migratórios. Em paralelo, o francês Gwenaël Morin monta “Os Persas”, tragédia de Ésquilo, sobre o povo hoje no Irã, e a artista associada da edição, a coreógrafa cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas, se inspira nas “Mil e Uma Noites” para conceber “Nôt”, que abrirá a programação.

Liderando uma tendência dos festivais, Avignon equipara, em número, espetáculos de dança às peças de teatro, no que parece ser um interesse em experimentar as diversas possibilidades da cena —e um desinteresse em delimitar fronteiras entre linguagens. “Brel”, da coreógrafa belga Anne Teresa de Keersmaeker em parceria com o bailarino francês Solal Mariotte, rende homenagens a Jacques Brel, um dos gigantes da canção francófona.

Por fim, se destacam a montagem do diretor alemão Thomas Ostermeier para “O Pato Selvagem”, clássico do dramaturgo noruguês Henrik Ibsen, e “La Lettre”, ou a carta, novo trabalho do encenador suíço Milo Rau. O festival se encerra com uma homenagem a Gisèle Pelicot, francesa que foi vítima de um estupro em massa, durante uma década, por seu marido e outros 83 homens.

O julgamento de Dominique Pélicot e de outros 50 agressores ocorreu no ano passado nos tribunais de Avignon. Dominique foi condenado à pena máxima de 20 anos de prisão. O festival vai refazer o julgamento, com uma trupe de atores, a partir de uma pesquisa minuciosa de toda a documentação do caso, feita por advogados, procuradores e uma equipe de especialistas.

“O ponto de partida foi transformar o tribunal em teatro”, afirma Rodrigues. “O objetivo foi seguir o exemplo de coragem dessa mulher, que revelou ao mundo sua identidade, porque, como ela disse, a vergonha está do outro lado. A vergonha é dos agressores.”

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O jornalista viajou a convite do Comissariado da Temporada Brasil-França

GUSTAVO ZEITEL / Folhapress

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