Em uma década, o Brasil deixou de notificar ao menos 45 mil casos de sífilis gestacional, o que aumenta o risco de transmissão vertical da doença, nascimentos prematuros e mortes de bebês.
A estimativa inédita é de um estudo publicado na edição de setembro do The Lancet Regional Health – Americas feito a partir de um modelo estatístico que considera fatores sociodemográficos, indicadores de acesso aos serviços de saúde e variáveis relacionadas à qualidade dos dados disponíveis para avaliar registros entre 2007 e 2018. Em relação ao total de casos registrados no período, o índice de subnotificação foi de 13%.
O modelo também permitiu a identificação de disparidades regionais. As maiores taxas de subnotificação foram encontradas nas regiões Nordeste e Norte, com liderança de Roraima, com 30%. No Sul, assim como em parte do Sudeste e do Centro-Oeste, os estados não ultrapassaram os 10%. O menor nível foi detectado em São Paulo, 3,59%.
Para os pesquisadores, os resultados evidenciam que há falhas na assistência dada a gestantes e que a incidência e a detecção da sífilis gestacional estão associadas a condições socioeconômicas e ao acesso a serviços de saúde, como um pré-natal adequado.
“Não estamos conseguindo acompanhar as gestantes adequadamente, captá-las no início da gestação, submetê-las a todos os exames necessários e até orientá-las sobre como evitar a sífilis e outras doenças”, diz Maria Yury Ichihara, vice-coordenadora do Cidacs (Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde), da Fiocruz Bahia, e co-coordenadora do projeto que deu origem ao artigo.
Na avaliação dela, os gargalos persistem ainda hoje e podem até ter aumentado. “Mesmo que o sistema de detecção tenha melhorado, o sub-registro deve ter piorado, porque houve desarticulação e desinvestimento no SUS no período.”
Dados do Ministério da Saúde de fato mostram um crescimento no número de diagnósticos de todos os tipos de sífilis. No caso da gestacional, em 2018, a taxa de detecção era de 21,5 por mil nascidos vivos e passou para 27,1 em 2021.
Por outro lado, dados do Previne Brasil, programa do governo federal de financiamento da atenção primária à saúde, indicam que as metas do pré-natal adequado no SUS não foram cumpridas em 65% dos municípios em 2021.
Um dos indicadores é a testagem para sífilis e HIV. Em 2021, pouco mais da metade (57%) das gestantes que fizeram pré-natal na atenção básica realizaram o teste. No segundo quadrimestre de 2023, o índice ficou em 73%. Essa lacuna é um dos fatores que influenciam a subnotificação.
Mesmo que se mantenha latente nos estágios iniciais, a doença pode levar a lesões cutâneas, ósseas, cardiovasculares e neurológicas. As consequências são as mesmas para a sífilis adquirida.
Outros efeitos são perdas gestacionais, natimortalidade e transmissão de gestante para bebês, chamada vertical. “Entre as crianças que nascem com sífilis congênita, muitas têm alterações na audição ou na visão, curvamento dos ossos da tíbia, aumento do fígado e do baço. São crianças que podem nascer com muitos problemas de saúde, inclusive neurológicos”, explica a médica sanitarista Roberta de Almeida Soares. Apenas parte dessas condições é reversível.
Para a especialista, o aumento dos diagnósticos pode ser entendido como uma oportunidade para a realização do tratamento adequado da gestante. Mas ela reconhece que a subnotificação existe tanto no sistema público quanto no privado e se soma aos desafios enfrentados para reduzir a incidência da doença.
No âmbito da prevenção, pesam a falta de educação sexual e conscientização em casa, na escola e nos serviços de saúde sobre a importância do uso de preservativos para evitar ISTs (infecções sexualmente transmissíveis). À Pesquisa Nacional de Saúde, do IBGE, 59% dos brasileiros maiores de 18 anos afirmaram não utilizar preservativos em relações sexuais. Os dados são de 2019.
Para as especialistas, há ainda outros desafios. Mesmo orientadas, muitas gestantes não conseguem conversar com seus parceiros sobre o uso de preservativo. Diante de um diagnóstico, há casos em que são acusadas de traição, principalmente se a sífilis estiver em fase latente no parceiro.
A consequência é uma dificuldade em tratar as parcerias, o que expõe gestantes à reinfecção e os fetos à sífilis congênita.
“O não tratamento dos parceiros é um grande problema e um ponto mais precário ainda no que diz respeito ao sub-registro. O estudo [do Cidacs] identificou apenas uma pesquisa sobre o preenchimento [dos dados sobre o tratamento dos parceiros], que encontrou menos de 30% de completude?”, diz Carmen Simone Grilo Diniz, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Uma saída, segundo ela, seria reforçar a estratégia de pré-natal do parceiro, que integra a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH) desde 2011. Em agosto, o Ministério da Saúde lançou a segunda edição do Guia do Pré-Natal do Parceiro para profissionais da saúde. Mesmo vendo a medida com bons olhos, ela afirma que é preciso incluir atividades educativas e de promoção de saúde nos orçamentos.
Para Soares, da Unifesp, as medidas de educação e formação continuada dos profissionais também são importantes para mantê-los atualizados quanto às melhores práticas e protocolos, mantendo-os aptos a atuar diante da complexidade dos casos de sífilis.
VIVIAN FARIA / Folhapress