SÃO PAULO, SP, E WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Em Paris na quinta (22) e sexta (23), para onde viaja após sua passagem pela Itália, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve ter um encontro com Ariel Henry, premiê do Haiti, a nação que é palco da mais grave crise humanitária das Américas o haitiano fez o convite, e o brasileiro acenou positivamente.
A ideia para a reunião, sob o pano de fundo da memória dos 13 anos de missão militar que o Brasil liderou no país, não seria a de apresentar propostas que atenuem o flagelo haitiano, mas sim a de ouvir o premiê. Brasília, afinal, quer distância de um novo protagonismo no caso.
O fantasma da Minustah, que resolveu dilemas de segurança pública locais apenas temporariamente, escalou o desafio brasileiro e de países como EUA e Canadá na hora de formular planos para atuar no Haiti, hoje com boa parte do território controlado por gangues.
No caso da diplomacia brasileira, o consenso vigente é de que uma nova Minustah está completamente fora de cogitação e de que ainda não há na mesa uma proposta satisfatória para ajudar o país, segundo atores envolvidos no diálogo bilateral ouvidos pela reportagem.
A postura de Brasília pode inclusive ser definida como fruto de uma decepção. “O Brasil ficou escaldado em função da falta do empenho da comunidade internacional”, diz o hoje assessor para política externa da Presidência, Celso Amorim, que foi chanceler durante quase metade da duração da Minustah.
“O Brasil se empenhou muito, inclusive com desgastes internos, e o saldo geral foi positivo. Mas, na hora que se precisava de ajuda da comunidade internacional, não houve, e isso gerou grande decepção. Não há nenhuma razão para o Brasil ser protagonista.”
As críticas às quais o diplomata se refere vão desde argumentos contra uma operação armada em outro país, ainda que com a bênção da ONU, até relatos de episódios de abuso de poder, despreparo e equívoco das tropas do Exército brasileiro enviadas foram mais de 30 mil soldados.
Assim, em ideias ainda ventiladas de maneira dispersa, o Brasil não descarta a cooperação, como por meio do envio de um conselheiro militar para ajudar as forças nacionais haitianas, mas nada muito além.
Brasília já foi procurada para falar sobre o tema. Nas visitas da embaixadora Linda Thomas-Greenfield, representante dos EUA na ONU, e de Brian Nichols, secretário-assistente de Estado dos EUA, em maio, o assunto esteve na agenda.
Além disso, ainda no mês passado, a secretária-geral do Itamaraty, Maria Laura da Rocha, encontrou-se com sua contraparte americana, Wendy Sherman, em Washington, e ambas também trataram do tema. E o próprio Lula discutiu o assunto com o premiê do Canadá, Justin Trudeau.
Mas Brasília parece pouco favorável ao que vem sendo sinalizado pelos EUA. “O Brasil não favorece operações multinacionais, teria de ser algo aprovado com a força das Nações Unidas”, argumenta Amorim, justamente na contramão do que os americanos têm colocado na mesa.
A principal opção apresentada pelos EUA, disse um oficial do Departamento de Estado à reportagem, é a formação de uma força multinacional (MNF, na sigla em inglês) independente da ONU para reestruturar a Polícia Nacional do Haiti. Ou seja: um grupo que não exerça funções diretas de segurança pública, mas que auxilie forças locais.
Diante do impasse internacional sobre como ajudar a mitigar a crise humanitária, começam a ser vocalizadas iniciativas individuais. Em Nassau no início deste mês, a vice-presidente Kamala Harris anunciou que o Departamento de Estado americano ajudará a polícia haitiana a investigar crimes transnacionais, em especial de tráfico de armas que alimenta as gangues do país.
Já o Canadá anunciou planos para estabelecer um escritório na República Dominicana, vizinha do Haiti, para coordenar o apoio ao país do premiê Ariel Henry. Só esqueceu de combinar com os dominicanos que, poucas horas depois, disseram de forma enfática que nada disso está autorizado em seu território.
Após o imbróglio, Ottawa e Santo Domingo disseram ter chegado a um acordo, bem mais modesto, para que a diplomacia canadense amplie seu pessoal diplomático em território dominicano para auxiliar o fronteiriço Haiti.
Para Ricardo Seitenfus, ex-representante da OEA (Organização dos Estados Americanos) no país e um dos principais estudiosos sobre Haiti, é compreensível que o Brasil esteja receoso. “É impossível estabilizar politicamente o Haiti com os atuais índices sociais e econômicos observados.”
Esse é o argumento apresentado por vários representantes da diplomacia brasileira, segundo os quais as mazelas de segurança estão diretamente relacionadas a um problema social complexo.
Seitenfus, porém, sinaliza que há áreas paralelas nas quais o Brasil poderia atuar. “Por exemplo, o processo eleitoral haitiano. Há 266 partidos. O voto eletrônico seria um avanço extraordinário para evitar fraudes, e o Brasil teria condições de ajudar.”
Uma das crises que se somam ao drama haitiano está assentada na falta de legitimidade: Ariel Henry não foi eleito pelo voto popular. Assumiu a gestão do país após o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em meados de 2021, a tiros em Porto Príncipe. O país, assim, não tem representantes eleitos hoje.
Enquanto isso, autoridades locais seguem pedindo ajuda. O pedido de uma missão para reestruturar as polícias locais foi levantado por Henry à ONU e tem apoio dos EUA um dos grandes desafios seria obter apoio de China e Rússia, membros permanentes do Conselho de Segurança que já sinalizaram oposição a uma missão de paz nos moldes conhecidos.
Nesta semana, fazendo coro a Henry, o ministro do Planejamento e Cooperação Externa, Ricard Pierre, voltou a pedir apoio à polícia local e soou o alarme: “O risco de guerra civil é quase certo no Haiti”.
Enquanto isso, em território haitiano, a população segue subjugada à violência das gangues, em especial na capital, Porto Príncipe, e ao retorno da cólera. Nas últimas semanas, porém, os relatos dão conta de que os ataques no espaço público refluíram o que não é, no entanto, fruto de uma resposta do Estado.
A aparente calmaria, no entanto, que parece ser temporária, foi consequência de uma resposta civil, no movimento conhecido localmente como “bwa kalé”, no qual a população saiu às ruas para perseguir supostos membros das gangues, muitos dos quais foram linchados, queimados vivos e mortos nas ruas.
MAYARA PAIXÃO E THIAGO AMÂNCIO / Folhapress