Brasil sempre naturalizou matar criminoso, e agora temos imagens, diz pesquisadora Joana Monteiro

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A economista Joana Monteiro, 46, é uma das principais pesquisadoras em segurança do país. Especialista em avaliação de impacto, ela conduziu um amplo estudo sobre os efeitos do uso de câmeras corporais pela PM de São Paulo até a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) assumir o governo paulista, e o compartilhamento desses dados com os pesquisadores ser suspenso.

Não foram as câmeras corporais que captaram as imagens de ações brutais e criminosas de policiais militares de São Paulo, reveladas nas últimas semanas. Mas o impacto dessas cenas, avalia ela, gerou uma pressão pública de força inédita, capaz de gerar demandas por mudanças concretas na política linha-dura do governador.

Durante um evento sobre os desafios da segurança pública no país, com a presença de Tarcísio, Joana argumentou que discursos de incentivo ao uso da força influenciam no comportamento de policiais nas ruas e tendem a aumentar as mortes provocadas por eles.

Em resposta, o governador fez um mea culpa. Ao final do evento, convidou a professora da FGV para uma conversa no Palácio dos Bandeirantes, ocorrida na última quarta-feira (11), sem a presença do secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite (PL). Joana mantém discrição total sobre o encontro.

Em entrevista à reportagem, ela fala sobre câmeras e os perigos de discursos populistas no campo da segurança ao mesmo tempo em que explica que os problemas brasileiros vêm de longe e demandam novas lideranças comprometidas. “A gente ainda está discutindo se abuso de força pela polícia é ou não é um problema”, critica. “No Brasil, sempre se naturalizou a execução de pessoas criminosas. O que muda é que agora a gente tem imagens disso.”

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PERGUNTA – Qual foi o impacto das câmeras corporais na PM de SP?

JOANA MONTEIRO – Os principais indicadores que eu e o [cientista político] Leandro Piquet Carneiro usamos no nosso estudo foram morte decorrente de intervenção policial e lesão decorrente de intervenção policial. Ambos tiveram uma queda muito forte com as câmeras corporais. A morte por intervenção teve queda de 57%, e lesão, de 63%.

Em geral, o impacto de uma política é da ordem de 10% ou 20%. Mas a magnitude desse número é tamanha que a gente observa na série histórica. São Paulo saiu de 900 mortes por intervenção policial por ano para 500 -um resultado puxado pelas equipes que usaram câmeras. A PM implementou as câmeras como um processo de aumento de transparência. Não era uma política de redução de letalidade. A ideia de analisar o impacto nas mortes foi de pesquisadores.

P – Neste tipo de monitoramento, a câmera precisa gravar continuamente ou pode ser acionada pelo policial?

JM – Os Estados Unidos são onde mais se usa câmeras e onde mais se pesquisou sobre elas. O relatório da Police Foundation, por exemplo, recomenda que a câmera não necessariamente precisa gravar o tempo inteiro. Mas o Brasil é diferente. Essa necessidade de gravar em tempo integral foi uma avaliação da própria Polícia Militar de São Paulo, depois de vários testes. O modelo foi bem feito e não tem nenhum motivo para ser revisado para trás.

Na ausência de acionamento em tempo integral, seria preciso um mecanismo de controle para saber se o policial ligou a câmera quando deveria ou não. E esse tipo de controle muitas polícias não têm. Hoje, por exemplo, a polícia do Rio sabe quantas câmeras estão funcionando a cada momento, mas não sabe quantos policiais estão na rua. Então não é possível fazer essa auditagem.

P – Câmeras corporais são fundamentais?

JM – A gente se perdeu um pouco neste debate, e a câmera ganhou uma importância gigantesca. Virou uma bala de prata, uma resposta fácil, como se fosse a única coisa a se fazer. As câmeras deveriam ser reservadas a casos de letalidade muito alta. Mas é assim: você dá a câmera, e a liderança política não precisa falar de letalidade porque não quer mexer com a base policial.

Há outras medidas que precedem esses equipamentos no controle da polícia, e que São Paulo já faz, mas não outros estados. A PM de São Paulo sabe quantos policiais estão nas ruas e quem está respondendo a qual chamado. Qualquer coisa que um PM tiver de fazer, ele tem que avisar o Copom. Fazer isso é mais barato, mais importante e precede as câmeras. Criou-se a narrativa que a PM de São Paulo é uma polícia sem controle, mas não é o caso.

P – Se há controle, como explicar o aumento da letalidade e de lesões provocadas por policiais em São Paulo?

JM – Nos últimos anos, a gente entrou num processo político de legitimar agressões. Isso começa na era Bolsonaro. Muita gente passou a defender abertamente o morticínio. No Rio, coisas que as pessoas tinham vergonha de falar passaram a ser ditas sem filtro nenhum. “Bandido, a gente tenta prender, mas não adianta, o juiz solta.” É um negócio muito grave com consequências sociais brutais. No Brasil, sempre se naturalizou a execução de pessoas criminosas. O que muda é que agora a gente tem imagens disso. E são imagens de estabelecimentos comerciais e dos celulares das pessoas.

No nosso direito, o policial só pode atirar no cidadão se houver resistência. Ele não pode pegar e dar um tiro em alguém. Existem muitos casos, como o da loja [em que PM de folga atirou pelas costas de um homem que fugia após roubar produtos de limpeza], em que não houve ameaça ou resistência. O policial decidiu executar. E quando não se discute esse tipo de comportamento, ele vai se disseminando.

P – Qual é o impacto da revelação dessas imagens?

JM – Muda o debate porque mostra uma arbitrariedade muito alta. Existe uma autonomização da polícia, na qual a decisão de matar parece ficar na mão de quem segura o revólver. Os policiais sempre reagem a iniciativas de controle do uso da força porque acham que isso quer dizer que a polícia não pode usar a força. Não é isso. A polícia é o agente autorizado pelo Estado a usar a força em determinadas circunstâncias, e isso tem de ser muito controlado porque é muito poder na mão daquela pessoa. São Paulo tinha isso muito claro de verificar se o policial que matou alguém estava cumprindo o protocolo. Se sim, tudo bem. Se não, o que você tem que fazer é também encaminhar ele para treinamento, não só responsabilizar.

Mas a gente tem um cenário em que os políticos deixam tudo até surgir um escândalo. E aí prende o cara para responder criminalmente e acabou a vida do cara. Quem paga por essa visão política são as populações vulneráveis, mas também o policial da ponta.

P – Nessa semana, você provocou o governador a fazer um mea culpa sobre o efeito de seus discursos. O que disse a ele?

JM – Que a gente trata segurança pública como se fosse tudo a mesma coisa, quando a gente tinha de discutir cada problema. As estratégias para reduzir roubo são diferentes daquelas para lidar com PCC, que são diferentes para a violência doméstica. Mas, no Brasil, a gente só conhece intervenção pela força, o que é um problema muito sério porque é ineficiente para vários crimes e também gera uma brutalização da polícia. A discussão é sempre sobre a dose, e a conclusão é sempre que é preciso mais força. O Estado passa a ser o gerador do problema, o que é uma loucura.

Esse é um debate difícil porque, no Brasil, quem fala sobre o tema é considerado inimigo da polícia. E não é sobre isso. É uma preocupação com a boa polícia e em não deixar que as poucas pessoas que fazem uso desproporcional da força dominem o debate. Hoje, é isso o que a gente tem: uma corporação de 90 mil pessoas com a legitimidade afetada porque alguns desviaram.

P – E os discursos?

JM – Falei que tão importante quanto as câmeras é o discurso do governador e do secretário da Segurança, que tem uma influência sobre o comportamento da tropa. Ele falou que concordava com o que eu tava dizendo. Está claro que a segurança está com um problema. É o ponto mais sensível da gestão paulista. E eu acho que o governador se abriu agora para entender o que que está acontecendo.

P – Os abusos registrados em vídeo em SP podem ser atribuídos aos discursos do governador e do secretário?

JM – O discurso tem um peso enorme. Seu efeito é muito grave. Eu vivi essa experiência no Rio. Quando [o ex-governador Wilson] Witzel foi eleito, eu trabalhava na Secretaria de Segurança e também dava aulas para a polícia. O Witzel é um caso extremo. Disse que policiais tinham de “mirar na cabecinha”. E eu vi o efeito disso no meu convívio em dois aspectos. De um lado, policiais dizendo que bandido só entende tiro no peito. De outro, promotores que não aceitavam que a violência policial é um problema. O assunto ficou bloqueado.

No primeiro ano do Witzel, o Rio de Janeiro registrou 1.900 casos oficiais de mortes por intervenção policial. O negócio só foi frear na pandemia.

P – São Paulo teve aumento da letalidade, mas ela é proporcionalmente menor do que a de 20 outros estados brasileiros, liderados por Amapá, Bahia, Sergipe e Goiás.

JM – No Brasil, esse problema começa a escalar muito em 2015 e 2016. Partimos de 3.000 mortes provocadas por policiais para 6.000, e crescendo. A Bahia hoje é um caso assustador, que começou a receber atenção. É o maior número absoluto do Brasil [1.699 mortes em 2023].

No Rio de Janeiro, em 2019, a polícia do Rio era responsável por uma taxa de 8 por 100 mil mortes violentas. Você conta isso para um estrangeiro da área de segurança, ele mal pode acreditar. No Brasil, ninguém se choca com esse número. O Rio, nesse ápice, tinha mortes provocadas pela polícia equivalentes às dos Estados Unidos inteiros. Hoje é a Bahia que provavelmente equivalente ou até supera os Estados Unidos.

P – Como explicar os números baianos?

JM – Quando você conversa na Bahia do por quê disso, a resposta é que o Comando Vermelho é que é violento. Mas o Comando Vermelho não existe só na Bahia. O Ceará é um estado com um enorme problema de facções, grupos muito violentos, e a polícia do Ceará tem 150 mortes, enquanto a Bahia tem 1.700. São ordens de magnitude brutais. Acho que isso vem da lógica de intervenção policial em que cada vez você usa mais a força. É também fruto de uma polícia sem mecanismo de controle, como uma boa corregedoria interna. O Ministério Público finge que o assunto não é com ele, quando é a instituição responsável pelo controle externo da atividade policial. E as lideranças não estabelecem o que é ou não aceitável.

No debate de segurança pública, há uma carência de ideias, de visão. E isso existe porque a agenda é totalmente bloqueada pelo uso da força militar.

P – Investimento no aparato militar é pouco eficiente?

JM – O problema é que a gente só faz isso. Investe em arma de alto calibre, tanque, carro blindado. O exemplo extremado disso são as guardas municipais, cuja missão, a meu ver, deveria ser regular a ocupação do espaço urbano, e estão investindo em grupamentos de operação especial com uniforme de caveira e fuzil. Se duas facções entram em tiroteio, a polícia precisa entrar com forte armamento, por exemplo. Mas esse aparato foi banalizado. E é decisão de quem aloca os investimentos, e não da polícia. Quanto dinheiro vai botar em compra de armamento e quanto em estrutura de investigação. Hoje, toda a pressão está em cima da PM, porque ela é a mais ativa.

P – Como mudar esse quadro?

JM – O passo zero é ter novos líderes com vontade de mudar e de gerar resultado. Hoje, enquanto não der nenhum BO muito grande, deixam rolar. Agora, existe pressão sobre vários governadores. Mas a grande maioria deles é assessorada com a mesma fórmula: é a polícia que resolve tudo, deixa ela fazer o que quiser. A pressão pública sobre o tema nunca esteve tão forte.

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RAIO-X

Joana Monteiro, 46, é professora de políticas públicas na FGV e conduz pesquisas quantitativas sobre impactos de políticas de segurança. É mestre e doutora em economia pela PUC-RJ. Foi diretora-presidente do ISP (Instituto de Segurança Pública), da Secretaria de Estado da Segurança Pública do Rio de Janeiro, e coordenadora do Centro de Pesquisa do Ministério Público do Rio de Janeiro.

FERNANDA MENA / Folhapress

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