PERTH, AUSTRÁLIA (FOLHAPRESS) – Apesar da distância, Austrália e Brasil têm muito a colaborar na área climática. Essa parceria pode abranger desde estratégias para lidar com as consequências do aquecimento global na agricultura parte essencial da economia de ambos os países até o desafio de conciliar as ambições de se tornarem potências em energias limpas enquanto ainda são grandes produtores de combustíveis fósseis.
A avaliação é da embaixadora para mudanças climáticas da Austrália, Kristin Tilley, um dos principais nomes de seu país nas negociações climáticas internacionais.
Em entrevista à Folha, a diplomata abordou ainda os planos e os desafios para a descarbonização energética australiana.
Tilley minimizou os impactos de uma eventual mudança de governo, relembrando que os maiores partidos do país estão comprometidos em atingir a neutralidade nas emissões de carbono até 2030.
A embaixadora defendeu também a candidatura Australiana à sede da 31ª conferência do clima da ONU, a COP31, em 2026, e a oportunidade de colaborar e dar protagonismo às demandas dos países-ilhas do Pacífico, entre os mais afetados pelas mudanças climáticas.
Em uma perspectiva de negociadora climática, Tilley avaliou que a saída dos EUA do Acordo de Paris, prometida por Donald Trump para os primeiros dias de seu governo, pode gerar desafios, mas que o progresso global das ações climáticas não seria completamente interrompido.
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*Folha – A Austrália é uma grande exportadora de combustíveis fósseis, mas agora tem um plano para se tornar uma superpotência em energia limpa. O que motivou essa decisão?*
*Kristin Tilley-* Tivemos uma mudança de governo há dois anos e meio, e pode-se argumentar que eles foram eleitos, em parte, por uma plataforma climática muito mais forte e ambiciosa. O governo entendeu que, se quisermos expandir nossa ambição climática e mudar a natureza das nossas exportações de energia, precisamos começar a construir opções para substituir as exportações de combustíveis fósseis.
Uma das principais medidas introduzidas, particularmente no último orçamento federal, envolveu investimentos significativos em pacotes para apoiar novas indústrias de energia na Austrália. O governo está apostando em quais indústrias serão mais importantes para outros países e onde a Austrália tem uma vantagem natural na produção.
*Folha – Mas, até agora, as exportações de combustíveis fósseis permanecem altas. Isso não é contraditório com os objetivos ambientais?*
*Kristin Tilley-* Como negociadora climática, acho relativamente fácil reconciliar isso: os países são responsáveis pelas emissões dentro de suas próprias fronteiras nacionais.
Ainda exportamos comparativamente grandes quantidades de energia baseada em combustíveis fósseis. No entanto, à medida que os países [que compram energia da Austrália] implementam ações mais práticas e compromissos para atender suas metas de emissões líquidas zero, esperamos ver redução na demanda por nossos combustíveis fósseis. Isso naturalmente levará a uma diminuição na produção e exportações.
Alguns argumentam que a Austrália deveria parar de exportar combustíveis fósseis imediatamente. Como embaixadora para o clima, eu entendo a lógica por trás disso, mas a realidade é que muitas empresas, sociedades e governos ainda precisam de energia confiável enquanto trabalham para uma transição energética. Se parássemos abruptamente as exportações, isso causaria impactos econômicos e sociais significativos para os países que atualmente dependem do nosso carvão e gás.
*Folha – Uma possível mudança no governo durante as próximas eleições pode levar a retrocessos nos compromissos ambientais? O discurso da oposição parece mais contraditório em relação às renováveis.*
*Kristin Tilley-* Tenho um cargo apolítico, então preciso ser cautelosa ao comparar o governo atual e a oposição. No entanto, temos uma eleição dentro dos próximos meses, e o clima e a transição energética devem ser questões-chave.
Tanto o governo atual quanto o partido de oposição se comprometeram com emissões líquidas zero até 2050, mas propõem caminhos diferentes para chegar lá. Então, não necessariamente haveria um retrocesso. Tudo dependerá das políticas que um possível governo diferente implementaria.
O que a oposição disse sobre o clima é que não estão confiantes de que a Austrália atingirá suas metas de 2030. Por isso, ainda não estão preparados para se comprometer com essas mesmas metas se estiverem no governo.
*Folha – A Austrália é candidata à sede da COP31, em 2026, mas vem encontrando resistência da Turquia, que também quer receber a conferência. Qual é o atual estado das negociações?*
*Kristin Tilley-* Nosso governo deixou claro que sediar a COP31 não é apenas sobre a Austrália, trata-se de uma parceria genuína com as nações do Pacífico, que têm as mudanças climáticas como maior prioridade.
Desde que esse compromisso foi feito, tornou-se ainda mais evidente o quão poderosa é a voz do Pacífico no cenário global, com autoridade para exigir ações globais mais forte. Sediar uma COP no Pacífico amplifica essa voz e dá ao mundo uma chance maior de pegar impulso para ações climáticas mais fortes.
No ano passado, nós buscamos extensivamente a Turquia para tentar resolver nossas propostas concorrentes. Buscamos um acordo que oferecesse mérito e valor tanto para a Austrália quanto para a Turquia, mas não chegamos a um acordo.
*Folha – A Austrália é um dos países responsáveis pelo financiamento climático às nações mais vulneráveis. Na COP29, em Baku, o valor acordado ficou abaixo do que a ciência diz ser o mínimo necessário para enfrentar a crise climática. Os países desenvolvidos, incluindo a Austrália, não poderiam fazer mais?*
*Kristin Tilley-* A posição da Austrália é muito clara: sim, as necessidades de financiamento climático são grandes, mas, igualmente, mais países deveriam estar contribuindo.
As necessidades são maiores do que os US$ 300 bilhões (R$ 1,8 bilhões) em novos compromissos anuais acordados. Mas quero chamar atenção para a segunda parte desse compromisso, que foi o reconhecimento da necessidade de cerca de US$ 1,3 trilhão (R$ 7,9 trilhões) por ano até 2035, através de uma variedade de fontes, públicas e privadas.
Tivemos um forte desejo na COP de Baku para expandir a base de doadores, incluindo mais países com capacidade de assumir obrigações, mas isso acabou não sendo possível.
*Folha – O objetivo é a inclusão de países como a China na base de doadores?*
*Kristin Tilley-* A China está na lista dos países para os quais gostaríamos de ver maiores obrigações em termos de financiamento climático, mas não se trata exclusivamente dela.
Há uma série de países que em 1992 eram claramente países em desenvolvimento, com status socioeconômico baixo ou médio, mas que agora avançaram para o nível médio e alguns até estão se aproximando da renda alta. No G20, há grandes economias globais, como Coreia, Cingapura, alguns dos estados do Golfo [que não tem obrigações de de doação para financiamento].
*Folha – Brasil e a Austrália estão geograficamente distantes, mas que tipo de colaboração no campo climático poderia existir entre os dois países?*
*Kristin Tilley-* Há várias oportunidades de colaboração. Uma área natural de parceria pode surgir da COP31, que esperamos sediar, já que ela viria para ser construída sobre o legado brasileiro da COP30, em Belém.
Brasil e Austrália são economias modernas que buscam mostrar liderança por meio de suas próprias transições e compromissos climáticos.
É o caso do setor agrícola, essencial para os dois países. Ambos somos grandes fornecedores de alimentos para grande parte do mundo, e poderia haver o compartilhamento também em muitas questões técnicas.
E embora o Brasil tenha uma proporção muito maior de renováveis em sua matriz energética, é um exportador de combustíveis fósseis. Há algumas conversas políticas difíceis que o Brasil, sem dúvida, também terá de fazer sobre a continuidade de suas explorações e exportações de combustíveis fósseis, enquanto ao mesmo tempo busca ser visto como um líder global contra as mudanças climáticas.
*Folha – Como o retorno de Donald Trump à Casa Branca e a provável saída dos EUA do Acordo de Paris poderiam afetar as negociações climáticas?*
*Kristin Tilley-* Vou responder como uma negociadora climática de longa data, não como porta-voz do governo australiano. Na minha própria experiência, nos anos 2000, eu costumava negociar para o governo australiano quando não apenas os EUA não eram parte do Protocolo de Kioto, mas a própria Austrália tampouco integrava esse compromisso em parte desse período.
Ainda que estivéssemos na sala [de negociações] enquanto observadores, havia momentos, quando uma questão era relevante, em que podíamos compartilhar nossas visões com o resto dos presentes.
A saída do Acordo de Paris do segundo maior emissor do mundo e maior emissor histórico certamente traz consequências, mas pode não ser inteiramente diferente do que vimos historicamente há apenas 18 anos.
*RAIO-X | KRISTIN TILLEY, 49*
Embaixadora para as mudanças climáticas da Austrália desde novembro de 2022, acumula mais de uma década como negociadora em assuntos de clima e meio ambiente. Antes de assumir o cargo, ocupou várias posições sêniores no governo australiano. Foi uma das líderes na área de resíduos e reciclagem, incluindo o desenvolvimento e a implementação da proibição da exportação de resíduos pela Austrália.
A jornalista viajou a convite do Departamento de Negócios Estrangeiros e Comércio da Austrália.
GIULIANA MIRANDA / Folhapress