Brasileiros que fugiram do Haiti relatam muitos tiros e corpos queimados nas ruas

BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – “Dormíamos em cima de uma enfermaria onde todos os dias chegavam feridos com tiros. E muitos perdiam a vida. A população se juntava quando alguém falecia. Quando escutávamos um grito, sabíamos que alguém havia morrido”, relata Lucas Santana, 23.

Voluntário da Missão Belém, organização religiosa que desde 2010 atua em Wharf Jeremi, em uma das áreas de maior violência no Haiti, ele foi um dos sete brasileiros retirados do país na última quarta-feira (10), de helicóptero, rumo à vizinha República Dominicana.

Com o principal aeroporto inoperante devido à violência das gangues e a fronteira terrestre com o único país vizinho fechada por desavenças recentes, o Haiti vive situação semelhante a de um país sitiado.

A operação organizada pelo Itamaraty demandou negociações com um Estado praticamente falido, do lado haitiano, e com Santo Domingo.

Como o depoimento de Santana, natural da zona sul de São Paulo, os relatos de outros brasileiros retirados nessa missão dão conta de retratar uma parcela do drama humanitário que se desenrola no Haiti.

“Acho que um grande problema lá é que a maior parte das casas são construídas de lata; não tem uma estrutura que proteja elas. Elas estão sem proteção no meio dos tiroteios, do fogo cruzado das gangues”, descreve o cearense José Leonildo, 51.

Também voluntário da Missão Belem, essa era a terceira vez que ele estava no Haiti. Sua mão de obra ajudava a erguer um hospital que a organização religiosa tenta construir junto à escola que já possui. Lucas Santana e também Leandro Dantas, 24, outro brasileiro retirado do país, trabalhavam na parte elétrica e eletrônica do projeto.

“Na penúltima e na última vez que estive lá, presenciei corpos de pessoas sendo queimados na rua com pneus”, diz Leonildo, referindo-se a uma prática que tem se tornado comum no país, onde gangues disputam território e atualmente controlam mais de 80% da capital.

Os três haviam desembarcado em Porto Príncipe em janeiro e tinham passagem de volta comprada para o dia 10 de março, justamente poucos dias após grupos armados invadirem o aeroporto e as companhias aéreas pararem de operar, uma vez que não podem garantir a segurança de passageiros e tripulantes.

Quando a embaixada do Brasil ofertou aos quase 70 brasileiros no país a possibilidade de retirá-los dali, o trio aceitou. Uma vez na República Dominicana, os três embarcaram rumo a Guarulhos nesta quinta (11).

Suas preocupações escalavam. Além da violência corrente, havia o fato de que água e alimentos começavam a escassear.

Preocupavam-se com eles mas também com as cerca de 3.000 crianças cadastradas no projeto da missão e que recebem refeições no local. Hoje a fome atinge 50% da população haitiana.

Para Priscila Jodas Pyrhus, 39, brasileira que também deixou o país no helicóptero viabilizado pelo Brasil, partir foi um alívio e uma angústia. Seu marido é haitiano e não pôde deixar o país com ela, uma vez que a República Dominicana tem nos últimos meses impedido a entrada de cidadãos da nação vizinha, mesmo aqueles que têm visto.

Natural de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, ele foi ao Haiti pela primeira vez em 2017 junto a uma missão batista. Conheceu seu esposo, manteve contato à distância e voltou em 2019 para viver. Hoje leciona inglês e literatura em uma escola cristã americana.

Pyrhus vivia na comuna de Delmas, relativamente menos afetada pelas gangues. Diz que às vezes se sentia numa bolha. Mas nem por isso deixou de ser impactada. “Duas vezes sofremos com bombas de gás lacrimogêneo, que entraram na escola e deixaram as crianças desesperadas.”

“Nós, estrangeiros, temos a possibilidade de sair do país, mas aqueles que ficam continuam sofrendo e não tendo para onde correr”, lamenta. “Com portos e aeroportos fechados, o preço das coisas sobe muito, e já está começando a ter escassez, o que pode aumentar a fome num país que já é miserável.” Também ela embarcou rumo ao Brasil.

O conjunto de crises sociais, políticas e econômicas no Haiti, que parecia ter observado seu ápice com o assassinato do presidente Jovevel Moïse em 2021, em sua casa, escalou em março passado, com a renúncia do premiê Ariel Henry.

Num Estado acéfalo, as dezenas de grupos políticos do país caribenho tentam negociar a criação de um governo de transição para dialogar com parceiros externos e conseguir receber ajuda de uma missão multinacional para colaborar com sua polícia.

Outro dos que compunham o grupo de brasileiros retirados do país é o frei Aldir Crocoli, da ordem dos capuchinhos, que desde 2014 estava no Haiti e vivia no no município de Tabarre, com violência galopante.

Há duas semanas, em uma troca de mensagens com a reportagem, relatou o que via. “Bandidos expulsando moradores, matando gente, pilhando casas; escolas e indústrias fechadas; nada de transporte a não ser moto, nada de combustíveis; bancos que abrem algumas horas em alguns dias da semana, fome, fome, fome. Perspectivas? Só Deus sabe.”

MAYARA PAIXÃO / Folhapress

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