Brigas de cientistas atrapalham certezas sobre ocupação da América, diz jornalista

SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – No fim da Era do Gelo, as Américas foram a proverbial “fronteira final”, o último continente a ser colonizado de norte a sul pelos seres humanos. Nas últimas décadas, o conhecimento sobre como esse processo aconteceu aumentou de forma vertiginosa -e, no entanto, as incertezas parecem ter crescido na mesma proporção.

Essa é a grande ironia de “Admirável Novo Mundo”, monumental livro-reportagem do jornalista científico Bernardo Esteves.

A obra mapeia em detalhes os principais sítios arqueológicos -do Alasca à Patagônia, passando pelo Piauí e pelo interior de Minas Gerais- que são peças importantes do quebra-cabeças da chegada do Homo sapiens ao nosso continente.

A narrativa de Esteves, porém, mostra que esqueletos antigos, artefatos de pedra e outras pistas do passado remoto frequentemente ficam em segundo plano diante de fatores muito mais complicados e subjetivos.

A influência geopolítica dos cientistas de países desenvolvidos, animosidades e idiossincrasias pessoais e a simples dificuldade de reconstruir dezenas de milhares de anos de história com base em pouquíssimos indícios atrapalham a formação de um consenso a respeito de quem eram, de onde vieram e quando chegaram por aqui os primeiros americanos.

“A escassez de dados na arqueologia é justamente a chave para a beleza dessa disciplina, pelo menos para o fascínio que ela desperta em mim. Porque os achados estão todos sujeitos à interpretação, não é?”, pondera Esteves em conversa com a Folha.

“As pessoas são obrigadas a trabalhar com vestígios indiretos que envolvem uma ampla gama de contestação. Isso está por trás da temperatura das críticas e das brigas entre os arqueólogos. E, na resolução das controvérsias, entra de maneira muito central a dimensão retórica do convencimento, como também acontece em outras áreas da ciência.”

O retrato da chegada da nossa espécie ao continente americano passou por uma série de reformulações profundas desde o século passado, todas devidamente explicadas no livro.

A avó das grandes hipóteses sobre o tema é o modelo “Clovis First” (“Clovis primeiro”, uma referência a uma localidade com esse nome no Novo México). Segundo esse modelo, os primeiros habitantes das Américas vieram da Sibéria há por volta de 13 mil anos e eram caçadores de grandes mamíferos usando, para abater os bichos, sofisticadas pontas de lança com uma canaleta na base, as chamadas pontas Clovis.

O povo dali teria exterminado os mamíferos gigantes (a chamada megafauna) e se espalhado por todo o continente em poucas centenas de anos. Formulada por pesquisadores americanos, a tese acabou gestando a chamada “polícia de Clovis” -arqueólogos prontos a derrubar qualquer proposta de uma presença humana nas Américas que fosse mais antiga que esses valorosos caçadores.

Mas, nos anos 1990, escavações realizadas no sítio de Monte Verde, no sul do Chile, obtiveram uma grande massa de evidências de que já havia seres humanos por desde ao menos 15 mil anos atrás, lançando por terra a primazia de Clovis.

Isso foi possível graças ao fato de que o chefe dos trabalhos em Monte Verde era Tom Dillehay –um arqueólogo americano respeitado, que conseguiu convencer seus pares dos Estados Unidos acerca da antiguidade do sítio.

Com a entrada em cena dos estudos de DNA de populações indígenas atuais e, cada vez mais, também do DNA de pessoas que viveram no continente há vários milênios, a possibilidade de uma entrada do Homo sapiens nas Américas até 20 mil anos antes do presente passou a ser aceita. A data bate com cálculos, feitos com base na genética, sobre a época em que os ancestrais de todos os atuais indígenas teriam se separado das populações siberianas.

O jornalista Bernardo Esteves, autor de ‘Admirável Novo Mundo’ Divulgação homem branco de camisa azul aberta, barba rala e óculos transparente **** Essa visão, porém, ainda não chegou a se consolidar como um novo paradigma consensual. De um lado, novas escavações em sítios como os da serra da Capivara, no Piauí, santa Elina, em Mato Grosso, e outros nos EUA e no México ameaçam empurrar a data da presença humana nas Américas para uns 25 mil anos atrás ou até mais.

Além disso, dados de DNA antigo e moderno apontam cada vez mais para a presença de um componente genético modesto, mas significativo, nas linhagens indígenas, que revela um parentesco com os atuais aborígines da Austrália e da Melanésia.

Esse componente, apelidado de “População Y”, ainda é de origem misteriosa –poderia ser parte da heterogeneidade populacional dos grupos que vieram da Sibéria. Quase nenhum pesquisador acredita numa viagem direta das ilhas do Pacífico para cá.

Essa trajetória é só um resumo das reviravoltas muito mais complicadas descritas no livro. Um elemento constante, porém, é o ceticismo e as críticas, nem sempre justas, feitas pelos arqueólogos dos EUA a qualquer sítio sul-americano que parecesse desafiar suas hipóteses.

“Esse colonialismo científico, ou imperialismo científico, como eu prefiro chamá-lo, é uma dimensão importante para a gente entender a contestação aos sítios anteriores a Clovis. Uma cena recorrente nessa história é a dos estudiosos da América do Norte vindo à América do Sul para conhecer e refutar as evidências de ocupações antigas apresentadas pelos cientistas daqui”, explica Esteves. Além disso, um certo prestígio cultural acabou se tornando parte da resistência desses cientistas a ideias novas.

“Os arqueólogos americanos se orgulham muito do fato de que as pontas acanaladas da cultura Clovis são a primeira invenção do país. Como se o povo de Clovis tivesse o seu Steve Jobs da Era do Gelo. É algo que casa bem com essa cultura do pioneirismo e da inovação que é muito a cara, a identidade dos EUA.”

O avanço das pesquisas genômicas às vezes é vendido como a maneira de resolver de uma vez por todas as dúvidas sobre esse capítulo da expansão da humanidade. Mas o autor diz que esperar isso é simplista demais.

Ele lembra que os esqueletos antigos cujo DNA pode ser recuperado representam uma porção ínfima das populações do passado, e que os indígenas atuais são sobreviventes de um genocídio que pode ter dizimado 90% ou mais de seus ancestrais. Com isso, muita diversidade genética se perdeu para sempre. A disciplina que vai ser responsável por tentar montar todos os dados num novo quadro é inevitavelmente a arqueologia, argumenta Esteves.

REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress

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