SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando acordou na cama do hospital, após uma cirurgia de 17 horas, Helena Torres Souza, 70, mexia apenas os olhos. Era dezembro de 2018 e, dois meses antes, ela estava bem e participando de corridas de rua. Um tumor cerebral comprometeu os neurônios motores da ex-professora de educação física, afetou a mobilidade dos membros e mudou sua história.
A reviravolta na vida de Levi Silva Castro, 25, também foi rápida. Ocorreu na velocidade do ônibus que atingiu sua moto em fevereiro de 2022, quando voltava da faculdade ele cursava Licenciatura em Geociências na USP para casa, na zona leste de São Paulo. O estudante foi projetado, bateu no guard-rail e lesionou as vértebras C3 e C4, na altura do pescoço.
Mas não era no passado que os dois pensavam enquanto observavam, de suas cadeiras de rodas, os testes com um novo exoesqueleto na unidade da Vila Mariana da Rede de Reabilitação Lucy Montoro. Ali, pela parede de vidro e sem piscar os olhos, eles estavam olhando para o futuro.
O encontro ocorreu na última quinta-feira (14), quando equipes da Folha e do Fantástico, da TV Globo, puderam acompanhar os primeiros pacientes a utilizar exoesqueletos de nova geração recém-chegados do exterior.
São dois novos modelos: o Atalante X, da francesa Wandercraft, que ganhou destaque quando foi testado pela senadora Mara Gabrilli (PSD), e o exoesqueleto da ExoAtlet, empresa russa adquirida em 2018 por uma companhia sul-coreana. Também está em negociação a vinda de um modelo chinês.
“Trazer todos eles para nós experimentarmos qual é a melhor opção para cada tipo de limitação funcional é nosso primeiro desejo. Depois, conhecendo todos esses exoesqueletos, queremos identificar um modelo que seja flexível, sirva a um grande número de pessoas com limitações funcionais e que possa ser construído no território brasileiro”, diz Linamara Rizzo Battistella, presidente do Conselho Diretor do Instituto de Medicina Física e Reabilitação da USP e ex-secretária estadual de Direitos da Pessoa com Deficiência.
O desejo de um equipamento nacional conta com os esforços de muitos profissionais e a expertise de anos trabalhando com o Lokomat, um exoesqueleto de geração anterior, mas depende principalmente dos feedbacks e resultados dos pacientes.
“Primeiro o pé direito”, avisa a fisioterapeuta que acompanha o teste com o Atalante e atua na configuração do equipamento para cada usuário. Com a ajuda de dois profissionais e da máquina, Helena fica em pé e dá os primeiros passos. Após alguns minutos de treino, caminha em direção ao marido e os dois se abraçam de pé.
“Você sente que está andando, não parece que é uma máquina que está ajudando”, afirma Helena após o exercício. “É uma sensação de bem-estar, eu nem sei explicar.”
Depois dela, é a vez de Levi testar o ExoAtlet. O aparelho é configurado com suas medidas e os primeiros passos são dados com apoio de um andador. Na sequência, este é substituído por muletas.
Ao contrário do Atalante, que tem um suporte de tronco mais alto, sensor de movimento no pescoço e 12 motores, o ExoAtlet é mais baixo, seus sensores estão localizados nos joelhos e no quadril e há quatro motores, compara o fisioterapeuta Rafael Francisco Vieira de Melo. “No exoesqueleto sul-coreano, o paciente precisa ter força nos membros superiores”, acrescenta.
Nos dois casos, os movimentos são monitorados por tablets. A tela permite configurar a ação levantar, andar ou rotacionar, por exemplo e mostra dados do paciente em tempo real. No caso de Levi, os batimentos cardíacos chegaram a 120 por minuto e, ao final, contrações musculares involuntárias (espasmos) e suor evidenciavam o esforço.
“Para mim, é tão grande e tão importante viver essas experiências. Eu não ando e ficar em pé é algo que é importante. É importante para a minha reabilitação e para o meu corpo”, avalia.
São vários os benefícios, explica André Sugawara, médico fisiatra da Rede de Reabilitação Lucy Montoro. No Lokomat, o paciente fica com o corpo suspenso enquanto caminha em uma esteira e a descarga do peso no solo é parcial. Nas máquinas de nova geração, não há nenhum mecanismo de suspensão, então o peso é completamente descarregado no chão, o paciente caminha mais livremente pelo espaço e pode exercitar novos movimentos, como sentar e levantar, girar e andar de costas.
“A tecnologia não traz a cura da lesão medular, de um AVC ou da paralisia cerebral, infelizmente. Mas temos outras coisas a comemorar com esses equipamentos. Eles ajudam a diminuir a osteoporose, a melhorar problemas intestinais, urinários, inclusive de movimentação, de condicionamento cardiovascular, e melhoram o bem-estar”, diz o médico.
Além disso, apesar de parecerem terapias exclusivamente motoras, elas ativam as vias neurológicas para a realização dos movimentos. “O cérebro tem que pensar no movimento que você vai fazer, então o cérebro cansa mais do que as pernas”, confirma Helena. Após o teste, ela sonha que um dia seja possível levar o equipamento para casa.
Levi é mais cauteloso. Ele ressalta que se trata de um incremento no processo de reabilitação e o desejo é ver as equipes e os aparelhos se espalharem para outras unidades do SUS (Sistema Único de Saúde), chegarem à periferia, ao hospital da zona leste em que ouviu violências como “levanta e anda” e “para de graça”. “Minha dor não era validada”, recorda.
“Eu sabia que existia a Rede Lucy Montoro, toda equipada. E era tão distante porque eu estava lá na cama, lá em São Mateus. E eu sabia que eu precisava disso. Hoje estou aqui dentro, faço a reabilitação com vários profissionais, só que quantos outros Levis não estão esperando na fila? Quantos outros Levis não têm acesso a isso?”, questiona o rapaz, membro da Uneafro Brasil e do Movimento Vidas Negras Com Deficiência Importam. “Eu não estou aqui sozinho e nem quero ser o último. Acho que tem que ser para todos e é muito importante estar dentro do SUS.”
Linamara também sonha. Com a ajuda dos professores Arturo Forner Cordero e Adriano Siqueira, da Escola Politécnica e da Escola de Engenharia de São Carlos, ambas da USP, quer criar e disponibilizar o quanto antes o exoesqueleto nacional.
Em dez anos? Os olhos dela se enchem de água, contrastando a resposta do coração e aquela que a razão exprime com as palavras. “Tecnologia tem que ser barata, para todo mundo poder desfrutar”, defende a pesquisadora. Nesse intervalo de tempo, ela imagina acesso, facilidade de preços, segurança e certamente financiamento pelo sistema de saúde.
STEFHANIE PIOVEZAN / Folhapress