SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um Caetano Veloso guri gostava tanto de “Maria Bethânia”, hit na voz de Nelson Gonçalves, que virou esse o nome de sua irmãzinha, a caçula de dona Canô, batizada em 1946. Os irmãos de Santo Amaro, na Bahia, cresceram e conquistaram lugar cativo no primeiro escalão da música brasileira, cada qual irradiando luz própria.
Chegaram neste sábado (14) ao Allianz Parque para o primeiro de três shows em São Paulo, sob a fascinante matemática em que 1+1 dá muito mais do que 2. Que o coro de milhares na plateia cantando “Alegria, Alegria”, a primeira canção, de título profético para o que seria esta noite, não os deixe mentir.
Caetano, 82 anos, e Bethânia, 78, desfiaram um repertório de mais de meio século de vida, com clássicos da carreira de ambos, mas não só. Estavam ali representando também o veterano Gilberto Gil (“Filhos de Gandhi”), a jovem Iza (“Fé”) e o saudoso Raul Seixas (“Gita”), além de um gospel do pastor Kleber Lucas que o ex-ateu Caetano, filho de uma matriarca que não dormia sem rezar, fez questão de incorporar ao concerto, “Deus Cuida de Mim”.
Nada que surpreendesse quem deu um Google antes de encarar uma arena sob chuva fina, que não chegou a incomodar. Foram oito capitais antes dos artistas aportarem na cidade que inspirou Caetano a versar em “Sampa” sobre “a dura poesia concreta de tuas esquinas” –a única novidade em relação às outras cidades, aliás, foi a inclusão dessa música, numa versão reduzida da letra original.
A essa altura do campeonato, o setlist já era manjado (veja abaixo), praticamente um copia e cola das apresentações prévias. É um daqueles shows sem muita brecha para escapar rapidinho atrás de refil de cerveja, superpovoado de músicas que você sabe de cor e não quer perder nenhuma.
“Você precisa saber da piscina, da margarina, da Carolina, da gasolina” (“Baby”), canta-se uma hora, para dali a minutos entoar “eu sou a chuva que lança a areia do Saara” (“Reconvexo”), e em mais alguns instantes lembrar daquele que “virá impávido que nem Muhammad Ali”, “apaixonadamente como Peri”, “tranquilo e infalível como Bruce Lee” (“Um Índio”).
Se o roteiro era previsível, vê-lo se desenrolar ao vivo é outra história. É história. Não é sempre que o vemos dividindo palco, afinal. Caetano e Bethânia formaram, junto com Gil e Gal Costa, o grupo Doces Bárbaros, que fez seu último e comemorativo show 22 anos atrás. No formato dupla, os rebentos de dona Canô só haviam feito uma série de shows, no distante 1978.
Só agora voltam ao que seu time do marketing chamou de “turnê histórica”, sem gastar o adjetivo gratuitamente. O show dispensa grandes pirotecnias, até porque de efeitos especiais bastam a presença de Bethânia e Caetano, um conjunto de veludo bordô para ela, um terno cinza nele.
Não teve nada muito espontâneo. Diálogos com o público foram pontuais e quase sempre protocolares. Até o “isso é Gil!” que eles anunciaram antes de “Filhos de Gandhi” foi um repeteco de shows anteriores. Vieram da plateia manifestações mais orgânicas, como um grito de “sem anistia” que irrompeu a certa altura, contra anistiar condenados por ataques antidemocráticos.
O que não quer dizer que Caetano e Bethânia parecessem estar no piloto automático. Entregaram um espetáculo com a segurança de quem sabe o que faz, com final feliz garantido para um público que queria.
Mesmo as músicas menos conhecidas pela multidão, como “Motriz”, foram recepcionadas com reverência.
Pregaram para convertidos até certo ponto –o gospel de Kleber Lucas, um pastor de credenciais progressistas, foi recebido com alguma frieza pela plateia. Soou como recado de que a fé evangélica, de grande aderência popular, ali não nutria muita simpatia.
Insistir em cantá-la é “uma maneira de eu expor o interesse que me despertam as igrejas evangélicas do Brasil”, explicou, na única passagem do show em que conversou mais demoradamente.
É uma religião que por sinal tem despertado a curiosidade e o respeito de Caetano, o mesmo que cantou em “Milagres do Povo”: “Quem é ateu e viu milagres como eu/ Sabe que os deuses sem Deus/ Não cessam de brotar, nem cansam de esperar”.
Houve o momento solo de cada um. Caetano começou o dele com “Sozinho”, um convite ao karaokê coletivo. Bethânia trocou de roupa para seu bloco, agora um vestido dourado com veludo azul, que combinou com performances teatralizadas de “Explode Coração” e “As Canções que Você Fez pra Mim”.
Gal, incontornável na trajetória dos dois em cena, ganhou homenagem no bloco que tocou canções consagradas na voz da cantora, morta em 2022. Fotografias daquela que encarnou o “mais perfeito eco da bossa nova”, nas palavras de Caetano, passavam no telão enquanto o duo revezava trechos de “Baby” e “Vaca Profana”.
O tempo é “um dos deuses mais lindos”, já diria “Oração ao Tempo”, uma das primeiras do show. Os irmãos souberam atravessá-lo sem soarem apenas nostálgicos de um passado que não volta mais. E souberam se atualizar numa interpretação poderosa de “Fé”, em que Iza a ela recorre “para quem não foge à luta” e “para enfrentar esses filhos da puta”.
Duas horas de catarse depois, Caetano e Bethânia encerraram a noite com “Odara”. Uma aposta segura –ao menos foi uma bet em que todo mundo saiu ganhando.
Setlist
Caetano e Bethânia
Alegria, Alegria Os Mais Doces Bárbaroso Gente Oração ao Tempo Motriz Não Identificado A Tua Presença 13 de Maio Samba de Dois Rios Milagre do Povo Filhos de Ghandi Dedicatória Eu e a Água Tropicália Marginália II Um Índio Cajuína Só Caetano
Sozinho O Leãozinho Você Não Me Ensinou a Te Esquecer Você é Linda Deus Cuida de Mim Só Bethânia
Brincar de Viver Explode Coração As Canções que Você Fez pra Mim Negue Vida Caetano e Bethânia
Sei Lá Mangueira A Menina de Oyá Exaltação à Mangueira Onde o Rio é Mais Baiano Baby Vaca Profana Gita O Quereres Fé Reconvexo Tudo de Novo Odara
ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress