RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Memórias das salas de cinema de Santo Amaro, ideias de longa-metragens não realizados, o deslumbramento com filmes brasileiros como “Hitler Terceiro Mundo” e “Terra em Transe”, a falta de paciência com as séries americanas contemporâneas. Caetano Veloso passeou em panorâmica por sua relação com o cinema numa conversa realizada na noite desta terça-feira (21) no Teatro Clara Nunes, no Rio de Janeiro.
O evento marcou o lançamento de “Cine Subaé escritos sobre cinema (1960-2023)”, da Companhia das Letras, que reúne textos de Caetano e trechos de entrevistas nos quais ele discorreu sobre o tema ao longo das últimas seis décadas. Organizadores do volume, Claudio Leal e Rodrigo Sombra fizeram o papel de entrevistadores no evento, que funcionou como uma espécie de trailer do livro.
Num teatro lotado, a conversa teve como ponto de partida um marco do início do fascínio de Caetano com o cinema e, consequentemente, com a própria experiência da existência. Adolescente, ele assistiu “La strada”, filme de Federico Fellini de 1954, no Cine Teatro Subaé. Sob a imagem da fachada do cinema projetada no fundo do palco do teatro, Caetano lembrou as marcas definidoras daquele episódio.
“Fui ver La strada, ou A estrada da vida, como foi chamado no Brasil, num domingo de manhã”, contou. “Aos domingos havia a matinal, de 10h às 12h. Fiquei tomado por emoções, chorei muito. Fui para casa e não consegui nem almoçar. Minha mãe ficou preocupada comigo. Fiquei chorando sozinho no quintal, pensando muito no filme. Tudo começa com La strada”.
Caetano lembrou que, em casa, ouvindo as conversas de suas irmãs mais velhas sobre o neorrealismo italiano, ele se preparava de alguma forma para as sessões. “Ia para o cinema já com algumas palavras e perspectivas na cabeça que me davam uma condição especial”.
A própria presença da língua italiana alimentava seu encantamento. “Todos os filmes italianos eram dublados, diferentemente dos americanos que tinham som direto. Mas mesmo em cima da imagem fora de sync (sincronia), a língua italiana era um negócio belíssimo”.
De alguma maneira, Caetano via no cinema uma maneira de equacionar seus interesses por desenho, pintura, música e texto. “O cinema já tinha meio tudo: imagens, palavras. Eu já escrevia, mas gostava de escrever prosa, poesia eu tinha um pouco de medo, achava que alguma coisa precisava acontecer dentro de mim para que eu pudesse escrever poesia. Mas vendo La strada pensei que o cinema podia mais do que qualquer outra coisa representar os aspectos mais interessantes e profundos da vida”.
Ao longo da conversa foram exibidas cenas de filmes nos quais Caetano participou como ator entre eles “Tabu”, de Júlio Bressane, no qual o músico encarnou Lamartine Babo ou autor de trilha sonora ”A dama do lotação”, de Neville dAlmeida, para o qual ele compôs “Pecado original”.
“Nelson Rodrigues (autor do conto homônimo em que se baseou A dama do lotação) me ligou e disse: Caetano, que você brilhe como o sol até o fim dos tempos”, lembrou o baiano, que comentou também sua performance como ator depois de assistir a um trecho de “Tabu”: “Sou um péssimo ator, um canastrão terrível. Mas Julinho (Bressane)… Fiquei maravilhado com isso aí. Tem tudo do Brasil. Viva a poesia.”
O artista reafirmou a importância central do cinema para sua música. “Zé Agrippino falou que Terra em Transe era incrível, e quando vi achei ainda mais incrível do que ele havia dito”, contou. “Era um filme mal alinhavado no sentido de feitura de cinema profissional. Mas tudo aquilo tinha uma ação sobre minha imaginação muito forte. Já disse muitas vezes em entrevistas que o filme foi o gatilho em mim para o que viria a se chamar de tropicalismo”.
“Acossado”, de Jean-Luc Godard, foi outro filme citado por ele como fundamental para o movimento musical que articulou ao lado de artistas como Gilberto Gil e Tom Zé: “O essencial eu vi em Acossado”.
Sobre o único filme que dirigiu, “O cinema falado”, de 1986, Caetano diz que suas principais memórias estão relacionadas ao horário das filmagens. “Sou um cara que dorme muito tarde e acorda muito tarde”, explicou. “No entanto, para fazer o filme eu tinha que acordar às 7h. Era tão gostoso estar ali de manhã cedo vendo aquelas pessoas trabalhando pela feitura das cenas. Nem me preocupava como ia ficar, era bom só estar ali. Ter uma vida matinal ativa, parecia que eu estava num sonho”, disse, para risos da plateia.
A noite teve ainda elogios a “O maestro” (“Gostei demais, e achei que Oppenheimer, que ganhou o Oscar muito menos bom que ele”); comentários sobre séries americanas (“Paulinha vê, eu vejo pedaços com ela. Mas esse negócio de você ter que ver um episódio inteiro, depois uma temporada ”); e um projeto de filme, cujo argumento está no livro, sobre um personagem fascinante que conheceu em Salvador chamado Marco Polo, que explora a cidade de barco, pelo mar (“Ele vive Salvador como se fosse Veneza”).
Caetano brincou também com o fato de, ao longo da noite, mais de uma vez ter esquecido nomes de amigos como Neville dAlmeida: “A velhice é fogo pra memória”. Neville, aliás, foi personagem de uma das mais divertidas histórias da noite. Caetano lembrou que o cineasta disse a ele, quando estavam no exílio, que o baiano havia cantado Vicente Celestino, mas nunca teria coragem de gravar “Cucurrucucu paloma” clássico kitsch do cancioneiro mexicano.
“Esqueci daquilo”, contou Caetano. “Quando fiz Fina estampa (álbum dedicado à música da América Latina, lançado na década de 1990), não gravei Cucurrucucu paloma, nem lembrei disso. Um dia, fui numa festa e quando cheguei quem abriu a porta foi Neville. Na hora, ele me disse: Covarde”, recordou, rindo. Na versão ao vivo do disco, acabou gravando a canção, que foi lembrada na conversa por ser a que ele canta numa participação em “Fale com ela”, de Pedro Almodóvar.
LEONARDO LICHOTE / Folhapress