FRANCA, SP (FOLHAPRESS) – A cicatriz dos incêndios começa a sumir com o crescimento rápido das plantações de cana-de-açúcar que margeiam as estradas dos municípios paulistas com economia atrelada ao agronegócio. Um mês após o ápice, é preciso sair do asfalto para entender as dimensões da catástrofe.
De 19 a 25 de setembro, a Folha percorreu cerca de 1.100 quilômetros de carro, partindo da capital, visitando dez municípios no epicentro dos incêndios nas regiões de Campinas, São Carlos, Ribeirão Preto e Franca. Adentrou propriedades rurais devastadas e caminhou por reservas florestais cremadas.
Ouviu produtores, autoridades, servidores, brigadistas, sitiantes, voluntários, entre outros que se viram cercados pelo fogo ou estão lidando com as consequências diretas dele, como resgates de animais.
Entre relatos de medo e preocupação com o futuro, há também ressentimento, seja em relação a quem aponta produtores rurais e moradores do interior como vilões das queimadas, seja com a demora pelo socorro.
Produtor de cana na cidade de Mococa, Eduardo Sampaio, 55, foi convencido por um político local a dar seu depoimento à reportagem. Superada a desconfiança, passou a tarde dirigindo sua caminhonete para mostrar reservas de mata em cinzas, plantações destruídas e animais mortos nos 2.500 hectares da fazenda quase inteiramente atingida pelas chamas.
Além da óbvia preocupação com o prejuízo financeiro, Sampaio relatou sentir tristeza devido à “perda irreparável” de mata nativa na propriedade.
“A gente tinha lá na propriedade uns 500 hectares de reserva, de mata, que foram dizimados, acabou”, conta. “A primeira semana ecológica de Cajuru [cidade vizinha], numa época em que nem se falava de ecologia, tinha o nome do meu avô, eu era moleque. Ele sempre gostou daquilo, passou a vida combatendo fogo. Coisas que a gente gosta e cuida, animais, tatus, porco-do-mato, javalis, perdemos animais queimados, vacas, cavalo.”
Principal cultura agrícola na região, a produção canavieira aboliu o uso do fogo quando substituiu completamente a colheita manual pela mecanizada há uma década em São Paulo. Queimada no passado para facilitar o trabalho, a palha da planta é hoje deixada no solo para preservar nutrientes. Em tempos de seca, porém, milhares de quilômetros de palhadas se tornam combustível para incêndios.
Representante de produtores de cana em cerca de cem municípios paulistas, a associação Canaoeste recorreu a dados de satélites meteorológicos para “estabelecer a verdade sobre as queimadas”, afirma o gestor executivo da entidade, Almir Torcato.
Verdade que, ao menos no que diz respeito às condições para propagação do fogo para uma área de quatro a cinco vezes o tamanho da capital paulista, está relacionada a uma condição climática extrema, segundo Torcato.
Análises sobre o auge da crise, em 23 de agosto, apontam ventos de até 45 km/h, umidade do ar a 8% e calor de 38ºC. É uma condição de alerta chamada ‘triplo 30’ -vento acima de 30 km/h, umidade abaixo de 30% e temperatura superior a 30ºC.
O estudo da associação, com dados da consultoria GMG Ambiental, mostra que São Paulo registrou 11.628 focos de incêndios em agosto, número 227% maior do que a média histórica para o mês, que é de 3.550 focos.
Em Patrocínio Paulista, o produtor de leite Lázaro Antônio de Oliveira, 58, testemunhou o vento forte trazer para seu rancho as chamas que estavam em uma colina próxima. Na vizinha Altinópolis, a ventania espalhou labaredas numa chácara onde jovens participavam de uma festa.
Também saltando entre morros, em Espírito Santo do Pinhal, o fogo de uma floresta de eucaliptos na Serra da Mantiqueira atingiu a vegetação de altitude e só não queimou um vinhedo graças ao esforço de voluntários que trabalharam dia e noite na contenção. Produtores temem que a fuligem tenha afetado a qualidade de uvas viníferas.
Entre Mococa e Cajuru, brigadistas viram fagulhas saltarem 70 metros sobre as águas do rio Pardo, iniciando novos focos de incêndio, matando animais e destruindo veículos como um carro e um trator.
Se por um lado o clima propagou o fogo, por outro, a quantidade de focos simultâneos quase elimina a hipótese de combustões espontâneas. A ignição necessariamente ocorreu por ação humana.
Torcato, da Canaoeste, diz que as análises apontam áreas de transição entre zonas rurais e urbanas entre os pontos mais frequentes de início das queimadas. São regiões onde chacareiros incineram lixo e mato para limpar terrenos, por exemplo.
Foi um foco em um pequeno depósito de lixo à beira de uma rodovia em Mogi Guaçu o responsável por espalhar fogo para três chácaras. A Folha acompanhou o trabalho de bombeiros e brigadistas que salvaram as propriedades.
“As pessoas acham que vão queimar só aquela parte [da área], mas perdem o controle”, comentou Carlos Alberto Machado, 48, motorista do caminhão-pipa da concessionária da rodovia.
Município onde a urbanização avança em larga escala ao setor rural, São Carlos teve 93 focos de incêndio contados pela Defesa Civil entre 23 de agosto e 23 de setembro, ocupando a segunda posição nessa lista. Altinópolis, em primeiro, teve 123.
A ocupação periurbana reforça a tese dos incêndios acidentais provocados por maus hábitos, mas há também indícios importantes de muitas queimadas propositais, segundo o diretor da Defesa Civil de São Carlos, Pedro Caballero. Ele aponta no mapa focos iniciados em intervalos tão curtos sob quatro pontes da cidade que só poderiam ter sido iniciados por alguém em um veículo ágil, como uma motocicleta. “Foram criminosos”, diz.
Especialista em catástrofes, Caballero diz que a preocupação vai além da busca por culpados. Diante de um quadro de mudanças climáticas, ele afirma que gestores públicos e organizações privadas deverão aumentar investimentos na prevenção de incêndios.
“Não adianta esperar que um helicóptero que está combatendo o fogo em Ribeirão Preto chegará a tempo para salvar uma chácara em São Carlos. Defesa Civil não é um órgão estatal, mas um sistema, que também depende de uma rede de voluntários bem treinados para atuar”, diz.
CLAYTON CASTELANI E ZANONE FRAISSAT / Folhapress