SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há exatos 90 anos, no início da noite, Carlos Ribeiro Justiniano Chagas sentiu uma forte dor no estômago após se encontrar com amigos. O seu filho Evandro logo o socorreu, mas o paciente intuiu a gravidade do caso: “Parece que vou morrer”. Ainda naquela noite, aos 56 anos, morreu o médico que entrou para a história ao descrever o ciclo completo de uma doença, batizada com seu sobrenome.
Um dos poucos cientistas brasileiros a ser indicado a um Prêmio Nobel, o pesquisador descreveu a descoberta do parasita, passando pelo vetor para humanos e pelos sintomas nas fases agudas e crônica até o reservatório na natureza.
Hoje, a doença de Chagas é classificada como doença tropical negligenciada pela OMS (Organização Mundial da Saúde), uma vez que acomete principalmente populações pobres e rurais em regiões tropicais e subtropicais globais.
Esse tipo de doença pode ser combatido com melhorias nos sistemas de saneamento, moradia e outros fatores sociais que aumentam a vulnerabilidade das pessoas. No caso de Chagas, casas de taipa, com frestas nas madeiras, são locais de ocorrência do inseto barbeiro (gênero Triatoma), que pode transmitir a humanos o protozoário Trypanosoma cruzi por meio de suas fezes.
Após a infecção, a maioria dos indivíduos são assintomáticos cerca de 30% a 40% dos infectados manifestam sintomas, mas mesmo esses podem demorar 30 anos a surgir. A letalidade da doença varia de 1% a 2%, segundo a Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde. No Brasil, em 2022, foram registrados 390 novos casos e quatro óbitos.
Nascido na cidade de Oliveira (MG), Chagas cursou o ensino médio em São Paulo e depois ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), aos 18 anos. Ali foi apresentado pelo professor Miguel Couto a Oswaldo Cruz, sanitarista e diretor do Instituto Soroterápico Federal (hoje Instituto Oswaldo Cruz, da Fiocruz). Foi com Cruz que começou os estudos sobre malária, tema de sua tese de doutorado, concluída em 1903.
No ano seguinte, apesar de uma indicação de Cruz para ser médico do instituto, o cientista preferiu atuar como clínico em um hospital público em Niterói. Em 1907, vinculado à diretoria-geral de Saúde Pública, foi enviado à pequena cidade de Lassance, no norte de Minas, para ajudar no combate à malária.
Foi nessa época, segundo o infectologista Luiz Carlos Lobo, sobrinho de Chagas, que ele fez a sua grande descoberta.
“Meu pai, Astério Lobo, irmão de Iris Lobo [com quem Chagas foi casado e teve três filhos], trabalhava como consultor na construção da ferrovia Central do Brasil, e entregou um vagão para ele realizar seus estudos. O Chagas tinha essa curiosidade do grande pesquisador. Ele percebeu que havia um inseto, chamado barbeiro, e no intestino do barbeiro encontrou o protozoário”, conta Luiz.
Sem conseguir realizar experimentos científicos no vagão, Chagas enviou lâminas e exemplares vivos do inseto para o Instituto Oswaldo Cruz para análise.
“Ele mandou os insetos para o instituto e viu que as cobaias infectadas ficaram doentes e morreram. Mas ele não conseguia ainda pegar o parasita circulante no homem”, diz o infectologista.
Com a comprovação da descoberta do parasita, Chagas descreveu a espécie como Trypanosoma cruzi (em homenagem à Oswaldo Cruz), distinta da conhecida até então (T. minasensis).
O cientista continuou seus estudos e detectou o parasita no sangue de um gato doméstico, indicando que havia outros reservatórios animais do protozoário.
Por fim, ao atender uma criança de dois anos doente, confirmou a infecção com o tripanossoma e, assim, chamou a doença de tripanossomíase americana, tornando-se a primeira e única pessoa na história da medicina a descrever todo o ciclo de uma doença.
Chagas revelou suas descobertas em 1909 em uma apresentação na sede da Academia Nacional de Medicina e também em um artigo na Revista Brasil-Médico. Outros trabalhos posteriores foram publicados em revistas científicas internacionais em alemão e inglês.
Contudo, ele sofreu forte rejeição de parte da comunidade médica, descontente com a ascensão do jovem cientista.
“Foi considerado um absurdo que uma pessoa naquela idade pudesse descrever uma doença nova. Ele teve muita rejeição, sobretudo do presidente da Academia, Afrânio Peixoto, que dizia que [a doença de] Chagas não existia”, afirma o sobrinho. “Ele foi por anos premiado e reconhecido no exterior e combatido no seu país de origem. Parece incrível, né?”
Segundo o farmacêutico e assessor técnico do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde) Alessandro Chagas, também parente de Chagas seu pai era primo distante do pesquisador, um dos motivos da rejeição dos médicos era o fato de ser “contra o status quo”.
“Na época, as epidemias eram negligenciadas, sobretudo as rurais, e você não podia dizer que o Brasil era um país doente. Chagas, assim como Cruz, se opôs a isso, eles eram da vertente dos médicos sanitaristas. E aí isso gera muito ciúme no círculo médico”, diz Alessandro.
Apesar do reconhecimento internacional, a premiação do Nobel nunca veio, embora ele tenha sido indicado duas vezes.
Em um artigo publicado em 1999, pesquisadores analisaram as indicações de Chagas à láurea e as causas de não ter sido premiado.
“A descoberta de Chagas foi, cientificamente, a mais espetacular entre as demais de parasitas tropicais, cujos descobridores foram [posteriormente] contemplados com o Nobel”, diz Marilia Coutinho, bióloga e doutora em sociologia, integrante da Coalizão Nacional de Pesquisadores Independentes. Ela é uma das autoras do artigo.
A lista de indicados e indicadores passou a ser divulgada na página do Nobel após 50 anos da láurea. Nas duas cartas oficiais, fica claro que o prestígio e a relevância da pesquisa de Chagas de fato chegaram até o comitê da premiação, mas o fato de não ter tido nenhum laureado em Medicina ou Fisiologia em 1921 não deixa claro se foi por movimentos contrários no Brasil.
“A história do descrédito à doença, bem como as dificuldades de Chagas nas instituições políticas, são bem conhecidas, mas realmente não há nenhum documento que nos permita afirmar, efetivamente, que houve interferência”, afirma Coutinho.
“É a síndrome de vira-lata, que é triste no país, e tem a ver com a história de Chagas. Não reconhecemos as nossas conquistas porque não queremos também revelar nossos erros”, diz Alessandro.
*
QUANDO CHAGAS FOI INDICADO AO NOBEL DE MEDICINA E POR QUEM
– 1913
Parasitologista Pirajá da Silva (1873-1961)
Laureado: Charles R. Richet
– 1921
Oftalmologista Hilário de Gouvêa (1843-1923)
Não houve laureados no ano
Fonte: Prêmio Nobel
ANA BOTALLO / Folhapress