SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Para quem conhece o jornalista Carlos Lacerda pode parecer estranho saber que seu primeiro livro teve como tema uma revolta de escravizados no interior do Rio de Janeiro.
Lacerda teve uma série de mudanças de rumo em sua trajetória política. Na juventude, era comunista, não tinha religião e chegou a participar da ANL (Aliança Nacional Libertadora), que defendia o combate ao latifúndio e ao integralismo.
Décadas depois, apoiou o golpe militar de 1964 e fez carreira política na UDN (União Democrática Nacional), partido mais à direita. Virou um aguerrido militante anticomunista.
Quando escreveu “O Quilombo de Manuel Congo”, em 1935, ele tinha 21 anos. O texto, que se baseia na história real de uma comunidade quilombola da região de Vassouras, acaba de ganhar uma reedição.
A iniciativa de republicar a obra foi do Museu Vassouras, com o intuito de promover o resgate das comunidades do Vale do Paraíba. Exemplares foram distribuídos ao público, de forma gratuita, durante a Festa Literária Internacional de Paraty.
O texto de Lacerda mistura pitadas de ficção com fatos históricos, como ele anuncia logo no início do livro, assinado com o pseudônimo Marcos na época da publicação original.
A ficção se inspira na jornada de Mariana Crioula, mulher negra escravizada durante o século 18. Ao lado de Manuel Congo, ela foi uma das líderes da revolta que ajudou a libertar centenas de outros trabalhadores na região do Vale do Café, no Rio de Janeiro. Foi a maior rebelião de pessoas escravizadas do Vale do Paraíba.
“Carlos Lacerda, aos 21 anos, teve dois propósitos principais ao lançar o livro sobre a grande rebelião negra de 1838: contar um episódio que a ‘história oficial’ tinha tentado apagar; inspirar, com o exemplo dos rebeldes negros do passado, as lutas sociais de 1935”, afirma o jornalista Mário Magalhães.
Além de autor do prefácio da nova edição, o jornalista trabalha na produção de uma biografia de Lacerda, que tem previsão de começar a ser publicada em 2025.
“Certa historiografia procurou, no Império e na República, eliminar da história o Quilombo de Manuel Congo”, diz Magalhães. “A reedição do livro de Lacerda estimula as novas gerações a conhecer a revolta de escravizados que recusaram a opressão e buscaram liberdade e justiça. Também contribui para entender a trajetória não linear do autor, personagem-chave da história do Brasil.”
Quando foi eleito vereador pelo Rio de Janeiro em 1947, Lacerda já havia rompido com a esquerda. Sua trajetória inclui ainda os cargos de deputado federal e governador do antigo estado da Guanabara. Mas se notabilizou mesmo por ser um ferrenho opositor de Getúlio Vargas.
Depois do golpe de 1964, retirou o apoio aos militares e teve seus direitos políticos suspensos por dez anos. Morreu em 1977.
Lacerda vinha de uma família com ligações políticas. Seu avô havia sido ministro do Supremo Tribunal Federal, e seu pai, prefeito, justamente de Vassouras. Foi frequentando a chácara da família ali que teve contato com as histórias da revolta negra ocorrida décadas antes na região.
Centenas de mulheres e homens se rebelaram contra o cativeiro e a violência com a qual eram tratados. Fugiram para as matas e formaram uma comunidade. A repressão foi violenta.
“Na matança dos quilombolas por tropas do governo imperial, distinguiu-se o tenente-coronel Luís Alves de Lima e Silva, que passaria à história como duque de Caxias e patrono do Exército”, conta Magalhães no prefácio.
O livro é pequeno, em formato de conto, mas não deixa de ter um tom político e até de exaltação à rebeldia daqueles quilombolas.
Mais do que valor literário, tem valor histórico e mostra a preocupação com as lutas contra desigualdades raciais de um político que depois pouco voltaria ao tema. Ele próprio não demonstrou interesse em reeditar o livro.
A obra resgata um fato histórico, por muito negligenciado, que exemplifica os muitos embates pelos quais passava a sociedade brasileira pré-abolição.
Como diz um dos trechos do livro: “No fundo dessas palavras rugem gritos de milhões de vozes. Gritos que são um só. Multidão de homens famintos, abandonados, que tomam a si a tarefa de conquistar a vida.”
O QUILOMBO DE MANUEL CONGO
– Autoria Carlos Lacerda (Marcos)
– Editora Museu Vassouras
TAYGUARA RIBEIRO / Folhapress