SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em qualquer livro ou filme sobre a bossa nova o nome de Carlinhos Lyra surge assim, no diminutivo, dito por algum outro artífice do movimento que renovou a música brasileira. Duas semanas antes de morrer, o cantor e compositor recebeu uma última demonstração de carinho do meio artístico, com o lançamento do álbum “Afeto”, uma homenagem aos seus 90 anos.
A palavra define bem a obra que se esmera numa poética da delicadeza, “o amor, o sorriso e a flor”, como João Gilberto cantou. As melodias arrojadas e o engenho harmônico estão a serviço de um lirismo cotidiano, em que rimas banais criam uma música envolvente, da melhor qualidade. Contratenor, Ney Matogrosso soube captar a delicadeza na primeira nota de “Canção que Morre no Ar”. “Brinca no ar/ um resto de canção”, diz a letra de Ronaldo Bôscoli.
É como se a música existisse antes de ter sido criada para o disco “E No Entanto É Preciso Cantar”, de 1971. Tudo é muito natural, como se a função do compositor fosse apenas ordenar uma sequência de notas. Três anos depois, Gal Costa gravaria a versão mais conhecida da obra, em seu álbum “Cantar”. Agora, Ney potencializa o significado de cada palavra, usando a sua capacidade única de expressão artística.
Não está ali o intérprete lascivo, mas o homem que vislumbra a completude ao lado de sua amada. Ainda que seja uma súplica (“Para nós, vem/ Um mundo sempre amor”), a canção aponta a “joie de vivre” bossanovista, um jeito de aproveitar a vida, de preferência no Rio de Janeiro. O comportamento também é percebido em “Saudade Fez um Samba”, interpretado por Gilberto Gil.
Nessa outra parceria com Bôscoli, incluída, em 1959, no disco “Chega de Saudade”, de João Gilberto, não existe tempo para a mágoa, pois o balanço da música de Lyra supre qualquer ausência. O violão estilizado de Gil, cuja voz emite uma imitação de sua própria batida, reforça a ideia de naturalidade da criação musical, o que não anula a complexidade criativa do compositor.
Afinal de contas, Lyra sempre alicerçou sua bossa no samba. Já em 1956, sua canção “Influência do Jazz”, que criticava a presença do ritmo estrangeiro no samba, foi gravada pelo grupo vocal Os Cariocas. Nos anos 1960, a defesa seria reafirmada, quando participou da fundação do Centro Popular de Cultura, o CPC, da União Nacional dos Estudantes. Foi então que Lyra se aproximou do samba do morro, de Cartola e Zé Keti.
Em “Afeto”, “Influência do Jazz” é interpretada por Ivan Lins e Joyce Moreno. Nesse dueto, as duas vozes amalgamam um único timbre, de registro nem grave nem agudo, que sobressai em meio aos ataques jazzísticos dos metais: saxofone, trompete e trombone.
Já “Maria Ninguém”, outra canção presente em “Chega de Saudade”, que seria gravada por Brigitte Bardot, ganha uma roupagem havaiana com a guitarra de Lulu Santos e o teclado de Marcos Valle. O arranjo remonta ao comportamento relaxado, típico do Rio de Janeiro, dos anos 1960. “Maria ninguém/ É Maria e é Maria meu bem/ Se eu não sou João de nada/ Maria que é minha Maria/ Ninguém”, diz a letra.
Em primeiro lugar, os nomes João e Maria podem formar qualquer casal brasileiro, o que aponta para um amor banal. Depois, existe um eco na letra (“ninguém-bem-ninguém”), cobrindo o ritmo da composição. A reincidência dos acentos tônicos ocasiona uma melodia que é difícil de tirar da mente. Num redemoinho, a palavra sucumbe ao ritmo. Faz lembrar até o “Bim Bom”, de João Gilberto.
“Afeto” ainda traz uma interpretação de Caetano Veloso para “Ciúme” e outra de Djavan para “Você e eu”. Nesse impressionante mosaico, que mostra a força do repertório de Lyra, tudo acaba à beira-mar, como não poderia deixar de ser.
Em “E Era Copacabana”, parceria do compositor com Joyce Moreno, Mônica Salmaso fala de um tempo em que o bairro ardia em noites febris de música, boemia e poesia. “Foi num tempo em que tudo era demais”, ela canta. É difícil se despedir da bossa nova.
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress