Carlos Zilio questiona o sentido político da arte com acidez e ironia em exposição

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Março de 1970. Carlos Zilio participava de uma ação política com operários quando levou três tiros e foi preso. O evento mudaria sua percepção de mundo e produção artística.

Quem visitar a exposição “Carlos Zilio – A Querela do Brasil”, curada por Paulo Myada, no Itaú Cultural, vai perceber que estamos diante de um artista-camaleão que responde aos estímulos sociais, pessoais e teóricos que o atravessam, sempre questionando o sentido político da arte e seu papel como artista e cidadão.

Comece pelo segundo subsolo. Logo na entrada, a marmita metálica preenchida com o molde de um rosto sem feições particulares e a palavra “lute” é uma das obras mais icônicas do artista e marca a época em que criava metáforas criticando a alienação, a massificação e o anonimato no sistema capitalista.

“Eu começo minha produção com arte política, mas não via sentido em mostrar esses trabalhos em museus. A ideia da marmita era fazer um múltiplo que seria uma espécie de panfleto a ser distribuído na porta das fábricas. Mas logo percebi que a marmita ainda era um veículo de dispersão da objetividade política. A partir de 1968, eu parei de fazer arte para fazer política”, diz o artista.

Depois do curto período sem criar, ele voltou a desenhar na prisão. O jovem Zilio carregava a formação estética da Nova Figuração —movimento marcado por artistas que desenvolviam expressões alegóricas de forte apelo gráfico e adotavam simbologias irônicas ou paródicas. Os 30 desenhos desenvolvidos em cárcere, reunidos na segunda sala, portanto, se aproximam deste tratamento visual.

Dois anos e quatro meses depois ele saiu em liberdade. Mas sabemos que a palavra “liberdade” tinha, na época, um significado difuso e os artistas estavam sob constante vigília.

A partir do encontro com antigos e novos amigos, como Antonio Dias, Carlos Vergara, Waltercio Caldas e Cildo Meireles, entre outros, Zilio voltou aos debates em torno do sistema da arte. “Nesse momento queríamos desenvolver uma política cultural, e não partidária. O mercado estava absolutamente dominado por gadgets ou arte decorativa. Não queríamos fazer arte política, e sim politizar o meio arte”, explica ele.

Questões formais, traumas, pontuações políticas e problemáticas existenciais transitam pelas obras. Objetos de tortura, como agulhas, alicate e pregos, entram no repertório junto ao sangue —agora mais contido e certeiro. A primeira obra feita após sua soltura, um autorretrato composto por uma mancha vermelha e seu nome completo, dá o tom da sala seguinte, a mais dramática da mostra. É composta por três telas com poças rubras e painéis criados com lixas ou chapas de cobre.

Zilio foi um dos fundadores da revista “Malasartes”, fazendo parte de um grupo de artistas e pensadores que buscavam produzir um pensamento crítico do sistema e da história da arte. “O Brasil tinha uma tradição construtiva, mas o movimento estava apagado. Por isso, republicamos o Manifesto Neoconcreto. Queríamos trazer de volta o que considerávamos peças estruturais da história da arte brasileira”, diz o artista.

No centro, esculturas elaboradas com blocos de madeira e serrotes materializam o estado de tensão daqueles anos. Esta estratégia se repete e amplifica no primeiro andar, quando andamos entre os elementos de “Atensão”, uma orquestra de objetos estabilizados por um jogo de equilíbrios de forças e pesos.

Zilio sai da tela e invade o espaço expositivo, criando situações conceituais e corpóreas que destacam a angústia e a inquietação diante de uma violência iminente. Tudo parece estar no lugar, mas há uma instabilidade no ar e estas frágeis estruturas podem desmoronar a qualquer momento.

Na sala dos fundos, uma série de desenhos e pinturas parecem, à primeira vista, arranjos formais tributários de seu interesse pela geometria, pela matemática ou pela história das vanguardas construtivas. Mas esta pesquisa, em Zilio e em muitos artistas da época, não acontece apenas por apetite plástico, mas também como um caminho para burlar a censura e destacar sentimentos de um país tomado por uma ditadura. Ideias como “cerco”, “morte” e “medo” ganharam concretude no cotidiano e presença nos trabalhos.

As palavras “espaço-vida” também indicam uma sobreposição de questões pictóricas e conceituais. Se de um lado, o artista estudava os limites e brechas do campo da tela; do outro, elaborava a noção de território. A equação aparece na obra intitulada “Instante da Libertação”. Poucos anos depois, ele aproveitou sua participação na 10ª Bienal de Paris para preparar uma estendida na capital francesa.

O autoexílio foi marcada por intensa produção intelectual e reflexões sobre as vanguardas na Europa e Brasil. Ao retornar, em 1982, publicou “A Querela do Brasil: A Questão da Identidade na Arte Brasileira”, livro que busca revisar aspectos do modernismo europeu e da formação deste movimento no Brasil, contestando sua retórica de identidade nacional e confrontando suas inovações estilísticas e temáticas com fragilidades políticas e sociais.

A teoria ressoou em sua pintura, e a sala dedicada a este período exalta um Zilio mais colorido e lúdico, ainda assim preciso e ácido, que olhava para a primeira geração de modernistas com respeito e receio.

Entre a homenagem, a ironia, a crítica, a mitificação e o humor, ele coloca em xeque as promessas de identidade e autenticidade. “Acabei concluindo que não existe arte brasileira”, brinca o artista. Na tela “A Querela do Brasil (ou o diabo e o bom Deus)”, por exemplo, ele sugere encontros com Tarsila do Amaral, Alfredo Volpi e Alberto da Veiga Guignard, adicionando ícones da sincrética religiosidade brasileira, cristã e fiel às cosmogonias africanas ou indígenas.

Nos anos 1990, há um rebaixamento de sua paleta cromática, redução das referências alegóricas, e uma investigação intensiva sobre gestualidades fluidas e atávicas. Na mostra, no primeiro subsolo, há uma seleção enxuta desta produção. Entre elas, vale notar “A Separação dos Continentes”, de 2010, uma tela sem chassi que replica os borrões do piso do ateliê de Iberê Camargo.

Zilio comenta: “Ele foi meu pai na pintura e, quando voltou para o Rio Grande do Sul, me emprestou o seu ateliê. Um dia, quando abri a porta, percebi que havia um tamanduá entre as manchas do corredor.”

“Ausência”, última pintura da mostra, dá pistas para a próxima virada estética do artista: uma tela negra marcada por linhas laterais brancas trazem a aura do corpo de trabalho exposto no Paço Imperial, no Rio de Janeiro.

A individual, curada por Ronaldo Brito, é como uma continuação da trajetória desenhada em São Paulo e apresenta seu atual mergulho na abstração geométrica e gestual. Mas, ao observar “Ausência” com atenção, você vai perceber um vulto ou vazio dentro da própria tela. Trata-se do último resquício do tamanduá.

CARLOS ZILIO – A QUERELA DO BRASIL

– Quando Ter. a sáb. das 11h às 20h. Dom. das 11h às 19h. Até 6 julho

– Onde Itaú Cultural – Av. Paulista, 149 – Bela Vista

– Preço Gratuito

– Classificação Livre

BETA GERMANO / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS