Carol Duarte volta aos palcos depois de Cannes e encarna neurose dos conservadores

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Carol Duarte não para. Depois de ganhar a simpatia de Cannes com a exibição do italiano “La Chimera”, consagrado como o melhor longa de ficção estrangeiro da 37ª Mostra de Cinema de São Paulo, ela veste um colarinho bufante, à la século 16, para encarnar uma senhora de engenho do Brasil colônia.

Em poucos minutos em cena, porém, a personagem revela ser uma atriz obcecada em dar vida a Ana Paes, figura histórica de quem se tem poucas informações –sabe-se apenas que, após a morte do marido em 1635, herdou a administração do enorme engenho Casa Forte, em Pernambuco.

A partir daí, ela passa a discutir com os outros três atores responsáveis pela peça qual seria a maneira ideal de interpretar Ana Paes em “Babilônia Tropical”, de Marcos Damigo, que está na última semana de apresentações.

Se por um lado a personagem sem nome de Carol e um dos artistas, ambos brancos, querem investigar a subjetividade da senhora de escravos, os outros dois atores negros contestam continuamente a alienação dos colegas em relação às mazelas do ciclo do açúcar para a população negra.

“Ela [Ana Paes] tinha influência direta sobre questões sociais de muitas pessoas. Ela estava no topo da cadeia econômica quando o Brasil se estruturava pelo trabalho escravo. Minha personagem, no seu autocentrismo, sabe disso e escolhe não lidar com essa realidade”, diz Carol, em uma chamada de telefone.

Sedenta por açúcar, a personagem de Carol entra em um crescente de emoções, até dar escândalos, conforme satisfaz seu vício pelo grão. A escolha de exagerar na atuação foi da própria atriz.

“É propositalmente constrangedor, para revelar a branquitude que perversamente entende o mundo a partir de suas próprias referências.”

A personagem de “Babilônia Tropical” se aproxima daquela de “A Visita”, idealizada por Aline Klein, primeiro solo da atriz. Na peça bem-humorada, Carol dá vida a uma mulher rica que recebe uma visita inesperada e parece delirar enquanto expõe uma torrente de pensamentos conservadores fanáticos.

Os dois espetáculos marcam o retorno de Carol aos palcos, depois de um longo período dedicado aos sets de filmagem. Uma reconexão com suas origens, de certa forma, visto que a atriz iniciou sua carreira no teatro.

Natural de São Bernardo do Campo, Carol subiu em um palco pela primeira vez aos 14 anos, através de um programa municipal de incentivo a cultura. “Tinha uma companhia na frente da igreja. Fui e não sai mais”. Depois, entrou na SP Escola de Teatro, já na capital paulista, para deixá-la pouco depois pela Escola de Arte Dramática da USP.

Foi naquele período que surgiu a oportunidade de interpretar Ivan na novela “A Força do Querer”, um rapaz transgênero que iniciava sua transição enquanto precisava enfrentar o preconceito da mãe, interpretada por Maria Fernanda Cândido.

“Quando começamos as gravações, eu não entendida nada de câmera e luz. Os produtores tiveram muita paciência comigo”, brinca. “Eu me questionava se estava fazendo o suficiente, porque no teatro tem um exagero, mas na TV a câmera está muito próxima. No teatro o ator que narra e constrói um imaginário, mas na TV e no cinema tem a câmera, que é um intermediário, e não precisamos narrar tudo.”

Se Ivan marcou a televisão brasileira por mostrar de forma detalhada e sensível a vivência de uma pessoa tansgênero, em rede nacional e em horário nobre, não demoraria para que Carol, dois anos depois, encarnasse a protagonista de “A Vida Invisível”, filme de Karim Ainouz aclamado pela crítica nacional, premiado em Cannes e selecionado para representar o Brasil no Oscar de 2020.

No longa, Carol dava vida a Eurídice jovem, interpretada por Fernanda Montenegro. A personagem e a irmã Guida, vivida por Julia Stockler, são separadas pelo pai conservador e passam a vida na esperança de se reencontrarem.

Carol conta que a ligação com Eurídice era forte. A atriz, que é a primeira geração brasileira de uma família de imigrantes portugueses, enxergava bem a influência patriarcal e religiosa nas dinâmicas culturais do seio familiar.

“São mulheres que têm seus corpos disponíveis para o masculino. [Eurídice] é uma personagem do silêncio, e foi concebida por movimentos internos. Eu vejo muito essas mulheres nas ruas”, diz. “Eu mesma, se tivesse nascido na década de 40, seria outra Carol. Nós somos acúmulo de tempo e espaço.”

Ivan e Eurídice conquistaram rapidamente o público, fenômeno que Carol associa a dramaticidade e a complexidade que envolve as personagens. Compreender os conflitos sociais, emocionais e geográficos, segundo ela, foi a chave da interpretação. “Sempre que faço uma personagem penso de onde ela é e onde vive. Isso muda muito a gente.”

O mesmo princípio vale para a personagem de Carol em “La Chimera”, primeiro filme internacional da atriz dirigido por Alice Rohrwacher. Italia é uma brasileira que vive no casarão decadente de uma idosa, para quem trabalha em troca de aulas de canto.

Além de uma certa fabulação da narrativa, repetida por Rohrwacher em seus longas anteriores, como “Lazzaro Felice”, de 2018, através da inocência e sensibilização dos personagens, “La Chimera” coloca a língua italiana como protagonista do filme –um desafio para Carol que, originária do teatro, não costumava declamar o texto exatamente como foi escrito.

“Precisei mergulhar muito no lugar e na língua. Eu costumo decorar mais o que a personagem quer e esta sentindo, e a palavra vem. Mas com o italiano eu não podia improvisar, a palavra tinha que sair de mim corretamente, e Alice é uma diretora bastante precisa.”

Agora, muito diferente de Ivan, Eurídice e Italia, a atriz dá vida duas personagens sem nome que, em sua exuberância, escancaram a pateticidade do conservadorismo brasileiro.

“O teatro tem uma autonomia maior do que o cinema, onde a produção e a grana envolvida são muito maiores”, diz. Depois de tanto dedicada ao cinema -também com “Malu”, longa que terminou de filmar há pouco– a atriz diz que precisava de um “arrepio”.

“Também por uma questão de personalidade. Eu gosto de mudar, de me desafiar e ter tesão pelo que to fazendo. O teatro é voltar pro meu lugar de prazer e disciplina.”

BABILÔNIA TROPICAL -A NOSTALGIA DO AÇÚCAR

Quando 16/11/2023Onde Centro Cultural Banco do Brasil -r. Álvares Penteado, 112, São Paulo. Qui. e sex. às 19h. Sáb. e Dom. às 17h. Até 19/11.Preço R$ 30

Classificação 14 anos.

Autoria Ermi Panzo e Marcos Damigo

Elenco Carol Duarte, Jamile Cazumbá, Ermi Panzo e Leonardo Ventura’

A Visita’, de Aline Klein De 24/11 a 17/12. Sex. e sáb. às 21h30. Dom. às 18h30. Sesc Belenzinho -r. Padre Adelino, 1000, São Paulo. R$ 40. 14 anos.

ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress

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