SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A trajetória de pessoas LGBTQIA+ no mercado de trabalho pode ser analisada em três fases distintas: o processo seletivo, o convívio na carreira e os caminhos alternativos, todos eles marcados por discriminação, vulnerabilidade e limitação de oportunidades.
Esse ciclo vicioso é mantido por meio de barreiras sociais, políticas e econômicas -visíveis e invisíveis-, de acordo com o Censo de Inclusão Produtiva LGBTQIAPN+.
A primeira fase do estudo foi apresentada pelo Pacto Global da ONU Rede Brasil nesta quinta-feira (14), durante programação paralela à 68ª Sessão da CSW (Comissão sobre a Situação das Mulheres), em Nova York.
Os dados partem de entrevistas com 12 especialistas que mostram como a discriminação no mercado de trabalho contribui para a vulnerabilidade de pessoas LGBTQIA+ e limita as oportunidades de emprego dessa população no Brasil. O levantamento, encomendado ao Datafolha, também é coordenado pela startup Nhaí e pela agência AlmapBBDO.
“A gente vem discutindo gênero numa perspectiva muito maior. Quando falamos de gênero, não estamos falando só do binarismo feminino e masculino. Quando se trata de mulheres é importante entender de que mulheres estamos falando, sabendo que existem interseccionalidades que precisamos considerar nessa discussão”, diz Verônica Vassalo, gerente de diversidade e inclusão do Pacto no Brasil, em entrevista por vídeo à reportagem.
O conceito de interseccionalidade, muito presente em discussões sobre inclusão e diversidade, diz respeito à sobreposição de identidades sociais relacionadas à opressão, dominação ou discriminação.
“Isso acontece com mulheres negras, mulheres com deficiência, mulheres com mais de 50 anos, mulheres transexuais e mulheres lésbicas. Elas sofrem atravessamentos baseados nas vulnerabilidades impostas a pessoas que fazem parte de diferentes grupos historicamente minorizados”, diz.
Isso significa que a desigualdade de gênero, gerada pelo machismo presente na sociedade, se soma a opressões como racismo, capacitismo, etarismo e LGBTfobia, por exemplo.
O estudo se propõe, então, a reconhecer a influência de fatores diversos na construção da carreira profissional de pessoas pertencentes à comunidade LGBT. Foram considerados contexto familiar, condições de saúde, acesso a educação, questões políticas, direito e legislação e seus impactos na trajetória profissional desses grupos.
Segundo o levantamento, a entrada de pessoas LGBTQIA+ no mercado de trabalho é dificultada por barreiras visíveis e invisíveis. O histórico individual e a visão do ambiente empresarial em relação aos indivíduos podem os expor a dilemas.
Entre as barreiras visíveis está o déficit curricular. Fatores como a falta de apoio familiar e a discriminação, seja por parte da família ou da escola, levam pessoas LGBT a não concluírem os estudos. Mapeamento da população trans realizado em São Paulo em 2021 mostra que 43% das pessoas transgênero entrevistadas disseram ter sido vítimas de violência física devido à sua identidade de gênero. O número é ainda maior para travestis (58%) e mulheres trans (45%).
Esse fator exclui pessoas LGBT logo no início da carreira, uma vez que seus currículos não chegam a ser considerados para vagas de trabalho formal.
Isso se soma ao viés do recrutador, que tendem a procurar por determinados perfis em detrimento de outros. O estudo cita casos em que recrutadores ou funcionários do RH pressionam candidatos a emularem uma heteronormatividade ou cisnormatividade para serem aceitos ou contratados.
“As barreiras invisíveis são paradigmas que a sociedade cria. Por exemplo, muitas pessoas acham que eu sou uma prostituta [por ser uma mulher trans]. A partir do pressuposto que a sociedade tem das garotas de programa, eu estou muito mais distante de ser uma liderança do mercado do que um homem branco, que as pessoas logo imaginam que deva ser o chefe”, afirma Raquel Virgínia, CEO da Nhaí.
Na fase de convívio e carreira, o estudo mapeia três pontos: a retenção de pessoas LGBT, as barreiras à progressão de carreira e a falta de benefícios inclusivos.
Embora as empresas tenham avançado em seus processos seletivos, com reserva de vagas para grupos minorizados, faltam iniciativas para a criação de um ambiente de trabalho inclusivo, que ofereça oportunidades de convívio e desenvolvimento para esses funcionários.
Por outro lado, eventuais déficits de experiência e o preconceito contribuem para uma progressão de carreira mais lenta, mesmo quando estes profissionais possuem mais qualificação. Outro ponto é a falta de políticas que considerem a diversidade de necessidades e características desses grupos, como é o caso de casais homoafetivos.
A soma desses fatores leva pessoas LGBTQIA+ a caminhos alternativos. O empreendedorismo surge como resposta à falta de oportunidades no mercado de trabalho formal, sendo, em muitos casos, mais uma necessidade do que uma escolha vocacional.
De acordo com o estudo, empreendedores LGBT tendem a se preocupar com o impacto social de seus negócios, para que outras pessoas não passem pelas mesmas violências. Se por um lado há mais inclusão, por outro o empreendedor LGBT enfrenta a falta de acesso a recursos e capital.
O empreendedorismo foi o caminho escolhido por Rafa Mores, 33, que se identifica como uma pessoa trans não binária e fundou a ELU, hub de inovação e tecnologia voltado ao impacto social. Rafa se identifica por meio de pronomes neutros.
“Eu me formei como primeira pessoa da turma de engenharia de computação na Unicamp, recebi um prêmio da Sociedade Brasileira de Computação, mas nunca trabalhei enquanto a pessoa programadora porque esses espaços ainda eles não são inclusivos”, diz.
Rafa conta ter se inscrito para 69 programas de trainee ao final da faculdade, até entrar em um banco. Apesar da conquista, a experiência não deixou de ser violenta. “A pessoa do RH que me entrevistou me orientou a tirar minha gravata. Ela falou que era muito moderna para o banco e talvez não fosse causar uma boa impressão.”
Nessa época, Rafa se apresentava como gay. “Olhando para a minha história, eu sempre fui uma pessoa não binária, desde criança, só que em toda a minha trajetória eu nunca tinha tido a oportunidade de conhecer uma pessoa não binária, então eu não conhecia essa possibilidade”, conta.
Essa falta estrutural de diversidade de inclusão passou a gerar incômodos em Rafa, que já trabalhava no setor de gestão de pessoas em uma startup unicórnio. “Eu tinha esse objetivo de propor mudanças, só que eu mesmo não poderia ser eu ali”. Quando se percebeu nesse ambiente, Rafa decidiu abrir mão da carteira assinada.
“Não tinha espaço nem para ser uma pessoa gay. Eu tive que sair para conseguir transicionar [processo pelo qual uma pessoa passa para adequar sua apresentação de gênero à sua identidade de gênero]. Eu falo isso porque as empresas não são acolhedoras, elas não têm nenhum benefício afirmativo, não tem nada.”
Rafa encaminhou um documento de 20 páginas a sua superior, no qual detalhava pontos de melhoria para a empresa. A resposta que teve foi um silenciamento para que a carta não chegasse aos colegas de trabalho.
Hoje de forma autônoma, Rafa trabalha para a construção de ações de diversidade junto com outras empresas. A Elu desenvolveu junto com a B3 um dos primeiros programas afirmativos voltados a pessoas não binárias, trans e travestis. “Hoje eu sei que a minha liberdade de ser quem eu sou não vale o salário de uma pessoa CEO ou de um CLT”, diz.
PAOLA FERREIRA ROSA / Folhapress