LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Poucos estilos de escrita diferem tanto quanto os de Clarice Lispector e Fernando Sabino. Mas os dois têm em comum a ligação com o Brasil tinham dificuldade de produzir e morar fora do país, o momento em que viveram e a correspondência que mantiveram num período decisivo na formação de ambos.
Essas cartas, quase todas trocadas de 1946 a 1959, foram reunidas em livro pelo próprio Sabino em 2003 e são reeditadas agora.
“Cartas Perto do Coração” soa atual numa época marcada pela literatura de autoficção gênero que, segundo o crítico Silviano Santiago, teve Sabino como um de seus precursores. Tanto o autor mineiro como a escritora nascida na Ucrânia irromperam na prosa brasileira com romances de inspiração autobiográfica.
Clarice começou antes. Seu primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem”, foi lançado em 1943. Com apenas 23 anos a autora se tornou um sucesso de crítica, comparada a Virginia Woolf, Marcel Proust e James Joyce pelas inovações estilísticas de sua prosa. Quando lançou o romance, ela havia acabado de se casar com o jovem diplomata Maury Gurgel Valente, com quem foi morar no exterior.
Numa missão diplomática do marido no Rio de Janeiro, em 1946, Clarice se aproximou de um quarteto de jovens intelectuais mineiros recém-chegados à então capital do país Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino. O primeiro se tornou seu amigo e confidente. O segundo, muitos anos mais tarde, seria sua paixão de maturidade, clandestina e intensa.
Entre Nápoles e Berna, onde morou com o marido, Lispector escreveu os romances “O Lustre” e “A Cidade Sitiada”. Nenhum deles reproduziu o sucesso da obra de estreia: foram massacrados pela crítica e praticamente ignorados pelo público. Clarice viveu em Maceió e Recife, mas não se sentia bem longe do Rio de Janeiro, que considerava a sua cidade.
O contexto da correspondência é esse: Lispector em busca da voz perdida, Sabino tentando encontrar a dele. Durante dois anos, de 1946 a 1948, as cartas atravessaram o Atlântico Norte entre Berna e Nova York, para onde Sabino se mudara com a família por razões profissionais. Amontoam-se as críticas à vida na Europa e nos Estados Unidos.
“Fernando Sabino é realmente um ser de comovente estupidez: no Brasil tinha casa, amigos, emprego melhor, automóvel (…). Aqui ele não tem nada disso e ainda ganha menos, trabalha mais, se literatiza abominavelmente, finge que sabe inglês, é empurrado de tarde no subway, leva desaforo pra casa, come comida sem sal, toma café sem açúcar, e para o mal dos pecados nunca saberá com antecedência quando é que vai voltar”, escreve o mineiro sobre si mesmo em 14 de agosto de 1946.
Ao que Clarice responde, depois de voltar de uma viagem à capital francesa: “Tive um verdadeiro cansaço em Paris de gente inteligente. Não se pode ir a um teatro sem precisar dizer se gostou ou não, e por que sim e por que não. Aprendi a dizer não sei, o que é um orgulho, uma defesa e um mau hábito porque termina-se mesmo não querendo pensar, além de não querendo dizer”.
Outro tema recorrente nas cartas é a vida de escritor em início de carreira. De volta ao Brasil, Sabino sofre para conciliar a carreira literária com um emprego público. Torna-se uma espécie de agente informal da amiga, que do exterior lhe envia vários contos que sairiam esparsamente na imprensa e um romance.
O livro é sistematicamente recusado por editoras brasileiras. “Com o tempo passando, me parece que não moro em nenhum lugar, e que nenhum lugar me quer”, escreve Lispector numa carta de 1956.
O grande momento da correspondência se dá neste mesmo ano, quando Sabino finalmente publica seu romance de estreia, “O Encontro Marcado”. A carta de Clarice comentando a obra é um primor de humildade e precisão, ao reconhecer o valor de um autor completamente diferente dela. Ela define o estilo de Sabino como “velocidade de stacatto”, um “modo de quem fala com a garganta seca”.
“O Encontro Marcado” era o que havia de mais parecido na literatura brasileira, até então, com um romance de geração. Por suas páginas desfilam alter egos do próprio Sabino, de seus amigos mineiros e do poeta hoje quase esquecido Jayme Ovalle cuja principal glória literária foi ser personagem de um livro.
O autor conquista finalmente, 13 anos depois, o sucesso de público e crítica que a amiga havia experimentado e que, até aquele momento, não recuperara.
Lispector só volta a ser Lispector quando se separa de Gurgel Valente, retorna ao Brasil e assume as rédeas da própria carreira literária, em 1959 ano em que a correspondência cessa.
Os contos que haviam sido publicados na imprensa são reunidos em “Laços de Família”, em 1960, com sucesso de público, e o romance tantas vezes recusado “A Maçã no Escuro” reconquista para autora em 1961 o respeito da crítica.
Numa das cartas, Sabino vaticina que o auge da amiga ainda estava por vir, enquanto sua carreira se encaminhava para uma atividade de cronista depois do sucesso de “O Encontro Marcado”, decidiu que iria viver da escrita para jornais.
Seu romance seguinte, “O Grande Mentecapto”, só sairia em 1979. “Os Movimentos Simulados”, livro que começara a escrever quando trocava cartas com Lispector, foi publicado postumamente em 2004. Jamais alguma obra sua repetiu o êxito de “O Encontro Marcado”.
Enquanto isso, Clarice inicia uma fieira de obras-primas. “A Paixão Segundo G.H.”, em 1964, retrata questões de gênero e classe como nunca antes havia se visto. Depois disso a autora ainda lançaria outros livros que entrariam para o cânone contemporâneo, como “Felicidade Clandestina”, em 1971, “Água Viva”, em 1973, e “A Hora da Estrela”, em 1977.
A última correspondência do livro, uma espécie de epílogo, é de 1969 e versa sobre outra obra de Clarice, “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”.
No hiato de dez anos entre as duas últimas cartas, ela viveu um período de felicidade clandestina com Paulo Mendes Campos, amigo de infância de Sabino. O amante era casado com a inglesa Joan Abercrombie. O relacionamento durou pouco, e a escritora disse posteriormente a amigos que havia sido a sua última paixão.
Clarice morreu em 1977, e a amizade com Sabino, com quem desde 1959 compartilhava a mesma cidade ele no bairro de Ipanema, ela no Leme durou até o fim de sua vida.
CARTAS PERTO DO CORAÇÃO
– Preço R$ 109,90 (256 págs.)
– Autoria Clarice Lispector e Fernando Sabino
– Editora Record
– Organização Fernando Sabino
JOÃO GABRIEL DE LIMA / Folhapress