Carter chega aos 100 anos como outsider, fantasma de Biden e oposto de Trump

WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Jimmy Carter venceu a primeira eleição pós-Watergate por ser um outsider de Washington. A mesma razão ajuda a explicar sua humilhante derrota para Ronald Reagan e sua bem-sucedida carreira pós-Casa Branca —mais bem avaliada do que a sua Presidência (1977-1981).

Seguindo a sina de ponto fora da curva, ele completa cem anos nesta terça-feira (1º). É o primeiro ex-presidente americano a viver tanto.

Em agosto, um dos filhos lhe perguntou se ele estava tentando chegar ao centenário. “Estou tentando votar em Kamala Harris”, teria respondido, segundo o relato de um neto.

O fracasso do democrata em sua tentativa de se reeleger, na eleição de 1980, foi invocado com frequência durante as semanas de pressão para a desistência de Joe Biden.

“Biden é um insider. Ele não é tão intelectualmente dotado quanto Carter, mas entende melhor a política”, diz à reportagem Jonathan Alter, autor de uma biografia de quase 800 páginas sobre o democrata centenário, intitulada “His Very Best: Jimmy Carter, a Life” (seu melhor: Jimmy Carter, uma vida). “O que eles têm em comum é que suas presidências são subestimadas. Eles foram melhores em alcançar resultados do que em vender essas conquistas.”

Há 19 meses sob cuidados paliativos, o estado de saúde do ex-presidente é frágil, mas sua mente continua lúcida, diz Alter.

Carter mora em Plains (Geórgia), a mesma cidadezinha de 600 habitantes onde nasceu. Cresceu em uma comunidade rural ainda menor, onde sua família tinha uma fazenda de amendoim. Formou-se na Academia Naval e fez uma pós-graduação em física nuclear, mas abandonou a carreira militar para assumir o negócio da família quando o pai morreu, em 1953.

Seu envolvimento com a política data desse período. Rapidamente, foi de senador estadual nos anos 1960 para governador e presidente dos EUA nos 1970. A imagem de ser alguém de fora do establishment, distante da política tradicional, foi fundamental para sua apertada vitória sobre Gerald Ford, o vice que assumiu a Casa Branca após a renúncia de Richard Nixon em meio ao escândalo de Watergate.

Mas, diferentemente de exemplos que abundam hoje, Carter realmente desprezava a política em si, diz Alter. “Ele não queria entrar no jogo de prometer projetos em troca de votos. Deixava subordinados cuidarem disso, porque achava muito desagradável ele próprio fazê-lo. Em parte, porque simplesmente não era bom nesse tipo de jogo, mas também porque não aprendeu rápido o suficiente que era preciso fazer algumas concessões à política tradicional”, diz.

Quem de fato tinha o dom da política na Casa Branca era a primeira-dama, Rosalynn, segundo o biógrafo. O casal permaneceu junto por 77 anos, até a morte dela, em novembro passado, aos 96 anos.

Rosalynn, por exemplo, fez uma visita sozinha ao Brasil em 1977, em um contexto de tensão crescente entre Brasil e EUA em torno de direitos humanos e projetos nucleares. Ela se reuniu com o general Ernesto Geisel (1907-1996) e, de surpresa, com missionários americanos que haviam sido detidos e espancados pela polícia.

A pressão sobre as ditaduras latino-americanas e suas práticas de violência é um dos marcos do mandato de Carter. Foi também o democrata que mediou os acordos de Camp David, selando a paz entre Israel e Egito, e devolveu o canal do Panamá aos panamenhos.

Por outro lado, a inflação disparou e o desemprego cresceu durante seu governo. À insatisfação econômica se somou um desastre de política externa: a chamada crise dos reféns. Durante 444 dias, 52 americanos ficaram presos na embaixada no Irã. A tentativa do governo de libertá-los foi um fiasco, com a morte de oito soldados após um choque entre helicópteros.

Em 1980, Carter conseguiu apenas 41% do voto popular, ou 6 de 50 estados. Foi o primeiro presidente a perder a reeleição desde Herbert Hoover, que governou os EUA de 1929 a 1933, durante a Grande Depressão.

Após a derrota, a qualidade de outsider voltou a beneficiar Carter, que aproveitou o currículo de ex-presidente dos EUA como mediador de conflitos, supervisor de eleições e ativista de direitos humanos pelo mundo. Só em 1994, por exemplo, esteve envolvido em um acordo nuclear entre as duas Coreias, no fim da ditadura militar no Haiti e num cessar-fogo na Bósnia.

Em 2002, 21 anos após deixar a Casa Branca, recebeu um Prêmio Nobel da Paz por sua história de ativismo.

“A piada é que Jimmy Carter é a única pessoa que já usou a Presidência de escada para outras conquistas”, diz Alter. “Eu acho que parte disso seja uma tentativa dele de se redimir e fazer uma contribuição [após a derrota em 1980], mas há também uma forte motivação de melhorar o mundo.”

“Carter é o anti-Trump”, considera o biógrafo, que lança em outubro um novo livro, desta vez sobre o empresário republicano. Alter relembra uma foto famosa, de 2009 , durante um encontro de todos os presidentes vivos à época na Casa Branca. Na imagem, George Bush (1924-2018), Barack Obama, George W. Bush e Bill Clinton dão risada, juntos e descontraídos. A um passo de distância do grupo está Carter. “Eu entrevistei 4 dessas 5 pessoas, e todas elas, inclusive o próprio Carter, concordaram que ele ainda era um outsider.”

*

A VIDA DE CARTER

1924

– James Earl Carter Jr. nasce em 1º de outubro, filho do agricultor Earl e da enfermeira Lillian, em Plains (Geórgia).

1943

– Ingressa na Academia Naval.

1946

– Casa-se com Rosalynn Smith, também de Plains.

1953

– Retorna a Plains após a morte do pai para assumir a fazenda de amendoim da família.

1962

– Torna-se senador estadual na Geórgia.

1970

– É eleito governador da Geórgia.

1976

– É eleito presidente dos EUA, derrotando Gerald Ford, com 50,1% dos votos populares e 55% dos votos do colégio eleitoral. O Partido Democrata também conquista o controle do Congresso, mas enfrenta divisões internas.

1977

– Após seu discurso de posse, caminha simbolicamente da sede do Congresso até a Casa Branca. Concede perdão aos que fugiram do alistamento durante a Guerra do Vietnã. Assina os Tratados do Canal do Panamá, que preveem a transferência do controle do canal para o Panamá até 31 de dezembro de 1999.

1978

– Após quase duas semanas de negociações, assina os Acordos de Camp David, mediando a paz entre o Egito, representado por Anwar Sadat, e Israel, liderado por Menachem Begin.

1979

– Carter assina o segundo Tratado de Limitação de Armas Estratégicas (SALT II) com a União Soviética, destinado a reduzir a proliferação de armas nucleares; o Senado dos EUA, no entanto, nunca o ratifica.

– Militantes iranianos tomam mais de 60 americanos como reféns na embaixada dos EUA em Teerã, iniciando uma crise que duraria 444 dias.

1980

– Anuncia o fracasso da operação para resgatar os reféns no Irã, resultando na morte de oito militares.

– Perde a eleição presidencial para Ronald Reagan, recebendo apenas 49 votos no Colégio Eleitoral, enquanto Reagan obteve 489.

1981

– Em seu discurso de despedida, reflete sobre os desafios da era nuclear e a importância dos direitos humanos e da sustentabilidade global.

1982

– Funda, junto com Rosalynn, o Centro Carter.

2002

– Recebe o Prêmio Nobel da Paz em reconhecimento aos seus esforços para mediar a paz entre o Egito e Israel, além de suas contribuições para a resolução de conflitos globais e a promoção dos direitos humanos.

2023

– Após uma série de internações hospitalares, passa a receber cuidados paliativos em sua casa, em fevereiro. Em novembro do mesmo ano, morre Rosalynn, aos 96 anos.

FERNANDA PERRIN / Folhapress

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