SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O nome do projeto, “Aberto”, adianta a exposição –destrancar espaços da cidade que, via de regra, estão restritos ao público, promovendo o encontro criativo entre arquitetura, arte e design. A primeira edição da mostra, no ano passado, ocupou a única residência projetada por Oscar Niemeyer em São Paulo. Desta vez, a casa escolhida é um projeto do engenheiro e arquiteto João Batista Vilanova Artigas, também na cidade.
Obras de artistas consagrados, como Tarsila do Amaral, Lygia Clark, Cildo Meireles, Edgar Degas e Lygia Pape, dividem espaço com nomes novos e obras criadas para o espaço doméstico. A exposição, que tem organização de Claudia Moreira Salles, Kiki Mazzucchelli e Filipe Assis, ocupará a casa a partir deste domingo.
Da rua mal se vê por cima do muro o topo da casa que pertenceu à família Domschke, a única dona do imóvel. A construção data de 1974, e o arquiteto que a projetou foi amigo e vizinho dos proprietários. Vilanova Artigas é referência absoluta do modernismo brasileiro e da chamada escola paulista de arquitetura.
A conservação e o destino são preocupações constantes em obras como a casa Domschke, mas a família diz que o futuro do imóvel é incerto após a exposição. Uma casa grande em uma região valorizada como o Alto Boa Vista, na zona sul, tem custos elevados de manutenção, e projetos como o “Aberto” podem viabilizar a preservação.
A exposição é atravessada pela relação entre as obras e os significados ampliados que têm um lar. Ao entrar pela porta da frente, a obra que recebe o visitante em casa é, não por acaso, uma tapeçaria. O artista italiano Alighiero Boetti, em viagem ao Afeganistão, criou, em parceria com artesãs locais, um jogo de letras e palavras dividido em quadrantes. Significados múltiplos e leituras cruzadas são auxiliados pela legenda que orienta o público com coordenadas.
O vitral colorido no final do corredor, apesar de não constar na listagem de obras da “Aberto”, é uma peça que se funde à exposição no contexto narrativo. Parte do projeto de Vilanova Artigas para a iluminação da casa, ele dialoga diretamente com a obra “Sol com Cérebro”, de Leda Catunda, que está logo ao lado.
Os paralelos entre arte e arquitetura se dão de diversas formas, e a obra de Leda Catunda anuncia que as relações afetivas entre as pessoas que frequentaram a casa também fazem parte da obra. A artista é uma amiga da família e frequentou o local na infância, trazendo uma leitura bastante pessoal para essa exposição.
Ao avançar pelo percurso, chegamos ao andar intermediário. Divisórias de vidro separam o ambiente interno, bem iluminado, do jardim. Obras de Ivens Machado, em concreto e ferro oxidado, marcam a relação com os elementos da construção das paredes. “Tem essa relação da materialidade na casa e a materialidade na escultura –esse caráter bruto no trabalho do Ivens”, diz Claudia Moreira Salles, organizadora da mostra.
Na parede, um quadro de Adriana Varejão exibe um ambiente azulejado, monocromático e modular. A obra dialoga com a parede de concreto, marcada por módulos. No lado oposto, “Descala 1b”, de Cildo Meireles –contemporâneo e conterrâneo de Machado– traz peças de aço em forma de cruz. “Tem esse diálogo do brutalismo, mas também o diálogo do ‘grid’ modernista”, diz Salles.
Na próxima sala, há cadeiras assinadas por Humberto Campana, um dos designers brasileiros mais famosos no mercado de decoração, com troncos de madeira que recebem um encosto de aço. O encontro entre a matéria natural e a intervenção humana se torna claro na peça. Em mais um paralelo, a madeira é usada com destaque nas obras de Vilanova Artigas para a construção das formas que modelam o concreto.
Uma divisória semitransparente separa a cozinha, que não estará acessível ao público, mas mantém os eletrodomésticos originais da casa –exceto o fogão, que foi substituído por um cooktop. O fotógrafo Andrés Otero fez imagens da residência no intervalo entre a desocupação do imóvel e o início da instalação da exposição. Encontrou o espaço durante uma pesquisa por uma locação para fotografias de mobiliário. “Uma casa congelada no tempo há 50 anos”, afirma ele.
A impressão é essa mesmo. A cozinha mantém funcionais eletrodomésticos dos anos 1970, com pias, cubas, armários e carpete que são os mesmos desde a construção. Na parede, quadros de natureza morta de Maria Klabin estabelecem um diálogo com o passado da casa.
A mulher de Alfredo Domschke, Lydia Domschke, era bióloga e morou na residência até a sua morte, em setembro do ano passado. A profissão motivou seu legado para a casa, que pode ser presenciado nas mais de dez árvores frutíferas dos extensos jardins. “Contei essa história para Maria Klabin, que pintou essas mexericas”, afirma Filipe Assis, outro curador da mostra.
No nível superior, o carpete ainda é o original. Uma paisagem campestre de Tarsila do Amaral divide espaço com uma escultura de Lygia Clark, da série “Trepante”, e outra de Tunga, que sugere formas femininas. Quadros de Lucas Arruda trazem a horizontalidade marcante, textura e tons que conversam diretamente com a parede de concreto do ambiente. Uma obra de Anna Maria Maiolino traz uma forma diferente da geometria ortogonal da casa, menos industrial e mais orgânica, feita à mão. “Ainda tenho um processo artesanal muito grande, mesmo quando não precisa”, afirma a artista.
Nos quartos, tanto a escala quanto os tons e as obras mudam. Há uma referência direta à família de Vilanova Artigas. Um móvel projetado por ele para a casa de sua filha, Rosa Artigas, gerou uma coleção da mostra que conta com estante, aparador e livreiro. Rosa Artigas diz que o móvel foi um presente de seu pai, quando ela teve o segundo filho e se mudou para um sobrado. Sem condições de construir um projeto de seu pai, ela pediu melhorias para a casa. “Meu pai estava com essa ideia de ‘sólidos platônicos’ e acabou desenhando esse móvel para ser colocado debaixo da escada. Um móvel único.”
Entre as obras, há homenagens à produção de Virgínia Artigas, mulher do arquiteto. O ambiente é tomado por obras de cunho popular –entre quadros de Nilda Neves e Amadeo Luciano Lorenzato– em espelho à sua produção, bastante diferente do rigor formal do modernista.
No ambiente pessoal dos quartos, também está a obra intimista “Torse au Ruban Bleu”, ou torço de fita azul, de Suzanne Valadon, em conversa com “A Saída do Banho”, de Degas. Ana Elisa Egreja faz intervenções que conversam especificamente com os banheiros da casa, com cores, uma roupa íntima e uma esponja pendurados. “Quando pego essas casas icônicas, quero muito trazer o lado banal, cotidiano, isto é, trazer a casa para o uso”, afirma a artista.
De volta ao jardim e à parte externa da casa, o final da exposição guarda surpresas positivas. Os elementos pesados, apoiados no chão, de Francisco Brennand e Ivens Machado, dialogam com a leveza do barco de Davi Jesus do Nascimento, que flutua sobre a piscina da casa, ampliando os diálogos com a arte popular das carrancas desenhadas na vela.
CAIO SENS / Folhapress