SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Cat Power faz jogo duro. A cantora americana de 52 anos, que atende na verdade por Chaun Marshall, recebe elogios com doçura, mas engata em alfinetadas. “É o que todos dizem”, respondeu, quando esta repórter se revelou ouvinte fiel de suas músicas. “E aí eles te chamam de Cat e dizem que ‘Sea of Love’ é seu primeiro disco.”
Marshall não viveu mesmo um mar de rosas na indústria. A artista foi uma das vozes da música alternativa dos anos 2000, além de ter flertado com o mainstream com a participação na trilha sonora do filme “Juno”, de 2007, e uma parceria com a Chanel. Mas isso garantiu o posto eterno para ela.
Ela cita o nascimento de seu filho, agora com oito anos, como ponto de virada. “Quase todo mundo envolvido na minha carreira me largou. Foi difícil, já que eu era uma mãe de primeira viagem”, diz. “Nenhuma indústria gosta quando uma mulher produtiva tem um bebê.”
Mas Marshall nem precisou do bebê para conhecer as agruras de ser uma mulher na música. A própria escolha do nome artístico Cat Power foi uma palhinha do cenário. “Amigos iam começar uma banda e me ligaram para escolher o nome. Perguntei o motivo e disseram que precisavam que eu fosse a vocalista. De novo, indaguei ‘por que eu?’. Disseram ‘porque você é mulher’. Aquilo me irritou tanto. Vi um trabalhador ferroviário com um boné que dizia Cat Diesel Power e disse ‘Cat Power'”, conta ela. “Não é fofo?”
Ela é otimista para as novas gerações, apesar dos comentários ácidos. Marshall vê com admiração e tenta –sem sucesso– fazer piadas sobre ser considerada uma espécie de pioneira para mulheres como Phoebe Bridgers e Mitski. Chegou, inclusive, a fazer um dueto com Lana del Rey na canção “Woman”, de 2018.
“Lana me convidou para uma turnê na Europa quando todos me abandonaram. Isso me lembrou das antigas, da camaradagem que existe entre os artistas, entre as pessoas que não são convencionais”, diz. “Ela é como a Marilyn Monroe –uma entidade. Criou uma personagem e eu a respeito profundamente por isso.”
A artista se diz animada pelas jovens que começam na música, mas não poupa críticas. “O rock está morto, por toda a pedofilia e o abuso de drogas”, diz. “Mas adoro novidade. Até Taylor Swift”, diz, em tom de brincadeira. Mas ela fala sério.
Marshall lança agora seu 12º álbum, dedicado a ninguém menos do que Bob Dylan. O cantor já foi homenageado por ela antes, com a música “Song to Bobby”, de 2008. Desta vez, porém, ela recria a histórica apresentação no Royal Albert Hall, em 1966, em que Dylan tocou metade do show acústico e a outra metade com guitarras elétricas.
A questão é que, naquela época, o rock estava longe de ser unanimidade, e Dylan, então a voz da canção de protesto, foi acusado de se vender. Na gravação pirateada do show do cantor, as chamadas “bootlegs”, é possível ouvir alguém na plateia chamando-o de Judas quando ele faz a transição elétrica, ao que Dylan responde ordenando que sua banda “toque alto para caralho”.
Ao ser questionada sobre a decisão de recriar este concerto, Marshall disse que primeiro surgiu o convite para tocar no Royal Albert Hall e, depois, a ideia de preencher aquele espaço com a música de Dylan. “Costumava rondar aquele lugar aos 20 anos e imaginava como seria se o Dylan me visse pela janela, como seria tocar com ele.”
Marshall fez, porém, uma escolha inusitada, considerando que a artista tem um histórico de medo de palco –e de problemas psíquicos e abuso de drogas que agravaram o problema.
Em seu Instagram, Marshall comemorou com uma foto no espelho, publicada em agosto, seus 115 dias sóbrios. Ela briga com o vício em álcool há tempos -ainda em 2006, uma reportagem do New York Times relatou em detalhes como a cantora estava. Os shows eram caóticos. Ela cantava canções picotadas, subia ao palco fumando e bebendo, além de brigar com o público. À época, a cantora disse ao jornal americano que sua mãe lhe dava mamadeiras de cerveja ainda bebê
No entanto, ao ser questionada sobre a escolha por um show com uma plateia que foi marcadamente agressiva com Dylan, ela pareceu ter superado os problemas com palco.
“Aquele foi um momento da história da música que transcendeu para a história mundial por causa de um cantor de protesto tocando guitarra elétrica. Foi uma forma que ele conseguiu de levar mensagens políticas profundas para um demográfico maior de pessoas”, diz Marshall. “Esse show mudou a forma como as pessoas discutem o que está acontecendo no momento.”
A artista, porém, não tem a mesma pretensão. “Isso fica para as crianças de hoje. Eu não posso tirar a nova geração de seus celulares.”
BÁRBARA BLUM / Folhapress