Caxtrinho canta, em ‘Queda Livre’, sobre personagens e cenários periféricos do Rio

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – É um “Menino do Rio”, mas outro menino, outro Rio: “Prego ’n’ chinelo/ E a tactel/ Cheio de marra/ Cria de Bel/ (…) Boné pra trás/ É menestrel/ Cabeça feita/ Cria de Bel”. Faixa de abertura de “Queda Livre”, álbum de estreia de Caxtrinho, a canção “Cria de Bel” apresenta em poucos segundos o originalíssimo universo do artista.

Ali, o cantor e compositor desenha, sob um suingue de métrica irregular como o asfalto da avenida Brasil, cenários periféricos e personagens que ele já definiu como “figurantes”. São eles que se espalham, com a organização caótica de metrópole, pelos quase 30 minutos do disco.

Negro, com 25 anos, Caxtrinho é, ele mesmo, um “cria de Bel” —Belfort Roxo, município da Baixada Fluminense. A perspectiva original de quem vê o mundo de fora do centro —ou melhor, de um centro próprio, deslocado da zona sul— somada à musicalidade fina e violenta de seu violão e de suas composições atraíram a atenção de outros criadores que atuam nas franjas da música popular.

“Queda livre” tem em sua ficha técnica nomes como Ana Frango Elétrico, Vovô Bebê, Negro Leo, Tori, Bruno Schiavo e Romulo Fróes.

Caxtrinho vem de família musical, do pai que só sai de casa com tamborim em punho para o caso de encontrar um samba pelo caminho, dos tios que tocam banjo e violão e, sobretudo, do avô músico profissional —o maestro, compositor e percussionista Nilton Castro, que vive na França desde a década de 1960 e lançou discos como “Mes Mains” e “Rhythm and Soul”.

Porém, sem conhecidos na indústria fonográfica, sem amigos influentes, plebeu na corte do Rio, o artista começou sua caminhada na selva de anônimos do Instagram, postando para poucas curtidas vídeos curtos com suas composições estranhas e instigantes. “Cria de Bel”, aliás, já estava nessa primeira safra, assim como “Vó Jura”, tema instrumental que fez para sua avó, e “Rolé na B2”, todas presentes em “Queda Livre”.

“Eu postava os vídeos para não esquecer as músicas, porque sempre fui um cara que fiz muita música”, lembra Caxtrinho. “Um dia, Vovô Bebê [músico, compositor e produtor] viu um desses vídeos e passou a me seguir. Começamos a conversar e, num desses papos, ele propôs gravar um disco com minhas músicas. Isso foi em 2019.”

Caxtrinho e Vovô Bebê deram início à gravação do que seria um EP, mas foram interrompidos pela pandemia. Quando voltaram, o QTV Selo convidou o artista para que ele fizesse um disco. Os dois projetos se juntaram no que viria a ser “Queda Livre”, que tem produção de Vovô Bebê e Eduardo Manso.

O álbum, que traz na capa uma pintura de Arjan Martins, carrega no nome sua síntese de caos e liberdade. É livre, mas é queda; é queda, mas é livre. “A expressão resume a experiência do disco”, explica Caxtrinho. “A queda livre não deixa você ter a expectativa de como vai ser quando você se estabacar no chão.”

A musicalidade de queda livre de Caxtrinho, com ginga de cria de Bel, dribla classificações. Há um diálogo com o trabalho de artistas próximos, como Negro Leo, Ana Frango Elétrico, Passo Torto e Ava Rocha. Mas é possível traçar ligações com escolas experimentais da MPB, como Jards Macalé, Luiz Melodia e Itamar Assumpção. Ou com o olhar poético de Aldir Blanc sobre o precário, o cotidiano desprezível e desprezado.

Seu violão carrega o fascínio pelo samba-canção de harmonias ousadas de Johnny Alf, pelos modalismos de Milton Nascimento, pelos barroquismos do João Bosco inicial e pelo lirismo cru de Almir Guineto. A presença da umbanda em sua vida —ele é og㗠também não pode ser ignorada.

“Quando eu comecei não conhecia João de Aquino, Marku Ribas e mesmo Itamar, que foram caras nos quais me encontrei muito”, conta Castrinho. “Mas se fosse falar de uma referência central para minha música, citaria um percussionista. Um Djalma Corrêa, um Naná Vasconcelos, o meu avô.”

Em nove música suas, só ou com parceiros —e uma assinada por um deles, Kau, sozinho—, Caxtrinho fala de situações ao mesmo tempo vulgares e plenas de potencial dramático. “Desastre na Pista” descreve um acidente na BR-101: “Quem viu, gritou amém/ De longe ouviu-se um plém”.

Uma ida à favela B2, na zona norte, inspira “Rolé na B2”, canção contemplativa, fluxo de pensamento que abarca maconha e o pregão dos camelôs do trem: “Piraquê três real, vai levar dois por cinco/ Ficou bonito comparar-te/ Com a promoção dos chocolates”.

Em muitas das canções, a presença de um antagonismo é marcada —o antagonismo da branquitude. À personagem-título de “Branca de Trança”, ele diz: “Não te vi sambar no pé/ (…) Vai tirar essa porra que eu não te dei essas confiança/ (…) Se subir o morro, vai ter pressão/ As preta não vai entender legal, não”.

Em “Brankkkos”, ele canta com Negro Leo a figura que descreve com desprezo, em fragmentos: “Shitpost, empresa do pai/ Xbox meritocrático/ Arco do Telles ou Villa Mix/ Facul de odonto, tão midiático”.

“Não estou falando do cara que é descendente de português, mora em Pilares e tem um carrinho na garagem”, diz Caxtrinho. “Tô falando da pessoa que tem o poder de mudar a sua vida num estalar de dedos. E a gente sabe por que esse cara tem esse poder. Ele é neto de um escravocrata que era filho de outro escravocrata. E assim sucessivamente. Então não tem como eu transmitir a mensagem de um negro doce porque o lugar do negro hoje não te dá essa capacidade de ser um negro doce.”

Como ele avisa ao playboy em “Papagaio”, “quem me segue tem que ter atividade”.

QUEDA LIVRE

– Onde Disponível nas plataformas digitais

– Autoria Caxtrinho

– Gravadora QTV

LEONARDO LICHOTE / Folhapress

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