Cemitério da Consolação, ‘museu a céu aberto’, entra em fase de recuperação

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No coração da cidade, em meio a uma paisagem de arranha-céus, uma rua estreita, pavimentada com cascalho de rio, estende-se entre uma fileira de ciprestes italianos de 15 metros de altura e edificações de mármore que parecem pequenos palácios, adornados com esculturas de bronze. Ao fim da viela, ergue-se imponente a miniatura de uma catedral gótica repleta de vitrais coloridos. Estamos no Cemitério da Consolação, o primeiro sepulcrário público de São Paulo.

Logo se percebe que o monumental portão da necrópole, obra do arquiteto Ramos de Azevedo, também responsável pelo projeto do Theatro Municipal, está em reforma. Para fazer o restauro, que deve terminar até o fim do ano, a atual concessionária do cemitério, a Consolare, contratou uma empresa especializada.

“É um lugar que ajuda a contar e a entender a história da cidade mais rica do país e de quem a ajudou a prosperar”, explica a geógrafa Olga Maíra Figueiredo, autora do livro “O Cemitério da Consolação: Uma Encantadora Cidade dos Mortos” (ed. Appris). Ela conta que o cemitério, inaugurado em 1858, numa época em que a região da Consolação era uma localidade distante, foi criado para substituir os sepultamentos no interior das igrejas, costume que data do século 5º na Europa cristã e que foi trazido ao Brasil pelos colonizadores portugueses.

Desde março deste ano, os 22 cemitérios públicos de São Paulo, assim como o crematório da Vila Alpina, passaram a ser administrados pela iniciativa privada, em uma concessão que terá a duração de 25 anos. A Consolare administra, além do Cemitério da Consolação, o da Quarta Parada, o de Santana, o do Tremembé, os da Vila Formosa 1 e 2 e o da Vila Mariana.

Há muita coisa a ser feita nos cemitérios da capital. No da Consolação, por exemplo, parte do muro do fundo, voltado para a rua Mato Grosso, desmoronou, e há túmulos abandonados, alguns dos quais em ruínas.

Uma série de iniciativas pretende, porém, restaurar a atmosfera de “museu a céu aberto” do Cemitério da Consolação. Segundo Fadlo de Oliveira, 34, gerente de operações da Consolare, além do incremento no número de vigias e vigilantes para cuidar da segurança, uma equipe de dez novos profissionais foi contratada para operar a zeladoria do espaço.

Não há dúvida de que esse é o cartão de visitas da empresa, com cerca de 20 mil sepultados, entre os quais figuras ilustres. Artistas e personalidades da política brasileira, como a marquesa de Santos, os escritores Monteiro Lobato, Mário de Andrade e Oswald de Andrade e a pintora Tarsila do Amaral (veja mapa), tiveram o corpo enterrado ali.

Vários de seus mausoléus foram criados por escultores renomados, como Bruno Giorgi e Victor Brecheret. “Temos consciência de que este é um museu a céu aberto”, diz Oliveira. “Nossa prioridade é mostrar a riqueza desse ambiente e torná-lo um ponto turístico importante de São Paulo.”

Qualquer intervenção nos jazigos, em especial nas esculturas, precisa ser submetida à aprovação dos conselhos de preservação de patrimônio. Além disso, a disposição interna das sepulturas e os equipamentos, como ossuários, capelas e portal, por serem representativos da tipologia de cemitérios construídos entre o final do século 19 e o início do século 20, também têm de ser preservados, de modo que qualquer alteração deve ser rigorosamente supervisionada.

Os proprietários dos jazigos abandonados ou em ruínas vêm sendo chamados a fazer a sua manutenção. Se a situação não for resolvida num prazo aproximado de oito meses, a prefeitura poderá declarar a retomada da cessão do espaço, e a concessionária tomará medidas de reintegração de posse, que lhe permitirão fazer exumações e revender ou utilizar o túmulo para outros fins.

Estudiosa desses espaços desde 2010, a professora Figueiredo conta que o abandono dos jazigos decorre do empobrecimento ou mesmo do desaparecimento das famílias. “É claro que os jazigos históricos do Cemitério da Consolação serão preservados pela concessionária, mesmo que não sejam cuidados pelos familiares”, avisa Oliveira. “É nossa obrigação conservar aqueles que foram tombados junto com o cemitério.”

No mês passado, a Consolare retomou o programa de visitas guiadas ao cemitério, atividade comum em países desenvolvidos, que já atraiu ao menos 200 pessoas nesta nova fase. A geógrafa Olga Figueiredo vê com bons olhos esse tipo de passeio. Na visão dela, esse é um instrumento cultural e educativo que pode ajudar a conscientizar a população sobre a importância histórica do local. Nas suas palavras, preservar o cemitério é “manter a história da construção, da formação e da pujança de São Paulo”.

Responsável por algumas obras na “cidade viva”, como diz a geógrafa, o arquiteto Ramos de Azevedo foi autor não apenas do portão monumental como também da capela central e de dois túmulos.

Outra curiosidade diz respeito ao mausoléu da Família Matarazzo, cujo mármore foi trazido da Itália em um navio. “O conde acompanhou a construção do mausoléu ainda em vida”, recorda-se a professora.

No meio do caos urbano e da poluição, o Cemitério da Consolação, por ser um espaço bastante arborizado, atrai algumas pessoas em busca de silêncio e de um pouco de ar puro, além de algumas aves, algumas das quais migratórias.

Não é o caso, entretanto, de Lourinho, um papagaio que costuma passear no ombro de seu dono em dias de sol. “É um lugar que traz paz a mim e a ele”, conta Bruno Giovannetti, 76, o tutor. “É o pior momento de deterioração do Cemitério da Consolação que já vi”, diz ele, um veterano, dono de uma experiência acumulada em mais de 30 anos de visitas a ruas, ruelas e sepulturas.

Sua paixão pela arte do Cemitério da Consolação começou quando recebeu de um amigo, estudioso de Florença, um pedido de ajuda para identificar artistas italianos que colaboraram para dar forma e beleza ao espaço.

”Pode parecer ironia, mas é um lugar vivo, repleto de beleza e sabedoria”, diz Giovannetti, que defendeu tese na USP sobre a participação de imigrantes no Brasil tendo como referência pesquisa em cemitérios.

“Independentemente de quem esteja no comando, seja o poder público, seja a iniciativa privada, não pode ficar do jeito que está”, continua.

Lourinho não consegue repetir todas as palavras do tutor, mas parece concordar com o parceiro ao movimentar a cabeça num simples gesto de aprovação.

ROBERTO DE OLIVEIRA / Folhapress

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