SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No arquivo do cemitério mais antigo de São Paulo o de Santo Amaro, na zona sul, fundado em 1856, livros de registro estavam carcomidos por cupins, danificados pela umidade e com várias páginas soltas. Restos mortais se perdiam no ossário geral por falta de controle no manejo.
Esse foi o cenário encontrado há um ano e meio, segundo a Cortel SP, quando a empresa passou a administrar o Santo Amaro e outros quatro cemitérios da capital. Localizar alguns dos mortos, especialmente aqueles enterrados há mais tempo ou que foram remanejados, tornou-se quase impossível após informações se perderem nos registros municipais ao longo de décadas.
O contrato assinado entre a prefeitura e quatro concessionárias exige que ao menos parte desse problema seja resolvido. As empresas têm prazo de quatro anos, que se encerra em 2027, para digitalizar todas as páginas de livros mortuários e terminar o recadastramento dos proprietários de jazigos em toda a cidade.
A partir do próximo Dia de Finados, no sábado (2), quem visitar os cemitérios Araçá (em Cerqueira César, na região central) e Santo Amaro poderá ver o primeiro resultado prático desse trabalho. A concessionária vai lançar um sistema de geolocalização de jazigos, que só foi possível devido à digitalização de documentos e a um mapeamento feito lápide por lápide.
Pela proposta, no site da concessionária será possível fazer uma busca pelo nome dos mortos no banco de dados da cada cemitério. Para cada nome encontrado, há uma página no site com a foto do túmulo, o nome dos familiares enterrados no mesmo local e a opção de encontrar o ponto exato do jazigo na plataforma Google Maps, inclusive com o trajeto a pé pelos corredores internos dos cemitérios.
A empresa diz que todas as 3.010 jazigos do cemitério de Santo Amaro e as cerca de 23 mil no Araçá foram totalmente mapeadas. A previsão é que os outros três sob administração da empresa São Paulo (em Pinheiros, na zona oeste), Dom Bosco (Perus, na zona norte) e Vila Nova Cachoeirinha (zona norte) tenham o mesmo serviço até o próximo Dia das Mães, em maio de 2025.
“Em função da qualidade dos livros, não necessariamente você vai encontrar [a localização de um corpo], tem página carcomida”, diz o diretor de cemitérios da Cortel SP, Ricardo Pólito, sobre os livros que contêm informações tanto de pessoas sepultadas quanto de proprietários de jazigos. “Em todos os cemitérios [estavam] mais ou menos assim.”
O mapeamento dos túmulos e o recadastramento de proprietários são essenciais para viabilizar o negócio das concessionárias e, para as famílias, são a única garantia contra a desapropriação de jazigos. A Cortel calcula que cerca de 25% das sepulturas de todos os cemitérios que administra estejam em situação de abandono o que significa quase 12 mil jazigos só nesses locais. É dever da família manter as lápides conservadas.
Se o proprietário não é encontrado, o local entra num processo que pode levar à perda do jazigo. Um chamamento público é obrigatoriamente publicado em jornal de grande circulação e, se o responsável não se manifestar dentro de um prazo de seis meses, a administração é autorizada a exumar os restos mortais para oferecer o espaço a um novo interessado. “É por isso que vamos fazer um esforço enorme para fazer o recadastramento, o máximo possível, diz Pólito.
Há casos em que não se sabe quem é o proprietário nem a pessoa que está sepultada, e o anúncio é publicado apenas com a identificação do jazigo. Neste feriado, a Cortel deve colar adesivos nas lápides que estão em situação de abandono ou ainda não foram cadastradas para alertar as famílias e orientá-las a procurar a administração.
Em cemitérios mais populares, em vez de jazigos permanentes, os corpos de famílias que optam pelo velório social, gratuito, ficam enterrados pelo prazo fixo de três anos e depois são retirados. Se a família não der outro destino aos restos mortais, eles são levados a um ossário geral e a exumação pode até ser feita sem a presença da família.
“O que a gente vê muito é a família ir ao cemitério, ela identifica que foi exumado e fala ‘tá, então ao menos me dê os restos mortais’, e aí não conseguem achar. Esse é o maior problema”, diz Rodrigo Macedo, diretor-executivo da Cortel SP. “Era mal gerido, agora não. A gente construiu ossários gerais novos exatamente para esse fim.”
Em setembro deste ano, a Prefeitura de São Paulo e a empresa Velar SP que administra seis cemitérios foram processadas por uma exumação sem autorização. O procedimento já estava agendado, com uma anotação nos registros internos da empresa para que a cova fosse preservada, mas a empresa admitiu que um funcionário abriu a cova por engano.
A Velar SP informou que seria necessário esperar três anos para abrir o jazigo novamente. A família diz que já não sabe se os restos mortais de seu ente querido estão realmente no local indicado pela empresa.
Uma nova exumação e exame de DNA foram determinados pela Justiça, mas a decisão está suspensa após a prefeitura recorrer da decisão. “A Velar cumprirá a decisão Judicial tão logo haja o trânsito em julgado de tais medidas recursais e seja intimada pelo Juízo”, diz a empresa.
Segundo os números informados pela SP Regula, agência que fiscaliza as concessões municipais, foram recadastradas 21% dos 117,7 mil jazigos em todos os cemitérios públicos da capital o prazo para completar o trabalho vencerá daqui três anos.
O órgão informou que a Cortel digitalizou 13,85% dos 39 mil jazigos sob sua responsabilidade, e a digitalização dos livros foi feita em 80% dos seus cemitérios. O Grupo Consolare recadastrou 43% de um total de 42.460 jazigos e concluiu a digitalização de 45% de seus livros. A Velar recadastrou 7,80% do total de 11.237 jazigos, mas concluiu 100% da digitalização dos livros dos cemitérios sob sua administração. O Grupo Maya recadastrou 4% dos seus 25.022 jazigos e também finalizou a digitalização de todos os livros, segundo a SP Regula.
“A Prefeitura de São Paulo reforça que a concessão dos cemitérios municipais, realizada em 2023, aprimorou a gestão do serviço funerário na cidade, garantindo gratuidades, reduzindo preço e ampliando a transparência”, disse a agência municipal. “Um salto de qualidade ainda foi registrado a partir da concessão, agora com parâmetros mínimos para urnas funerárias e cinerárias, tempo de velório e rastreamento do corpo.”
A concessão dos cemitérios foi alvo de críticas durante as eleições municipais. Houve um aumento de 400% nos preços básicos, apesar da redução de 25% no valor do funeral social (de R$ 755 para R$ 566), concedido a quem não tem condições de pagar os valores no ato do velório. Em agosto do ano passado, pesquisa Datafolha mostrou que 58% dos paulistanos não viam melhoria no serviço nos cemitérios após as concessões, enquanto 9% avaliavam positivamente.
TULIO KRUSE / Folhapress