MONTEVIDÉU, URUGUAI (FOLHAPRESS) – Foi ele quem cortou a fita vermelha do período democrático recente no Uruguai. Em 1984, após mais de uma década de ditadura, o advogado e jornalista Julio María Sanguinetti (Partido Colorado), 88, foi eleito presidente do país, o primeiro da redemocratização.
Exatos 40 anos depois do dia dessa eleição, ele recebe a reportagem em sua casa em Montevidéu nesta segunda-feira (25). Horas antes, o país elegera Yamandú Orsi (Frente Ampla), que assume em março do ano que vem a cadeira que Sanguinetti reestreou no adeus ao autoritarismo.
Ele diz ser muito provável que a Coalizão Republicana, que reúne os Partidos Nacional, Colorado, Conselho Aberto e Independente, forme um projeto semelhante à centro-esquerdista Frente em torno de um candidato único, quiçá já para o próximo pleito, daqui a cinco anos.
Sobre os fatores que levaram à eleição de Orsi, diz que houve falhas na estratégia da Coalizão, mas que também pesou a participação do ex-presidente José “Pepe” Mujica. Algumas horas antes da entrevista, Sanguinetti havia falado com Orsi ao telefone, o opositor político a quem chama de alguém muito amável e disposto ao diálogo.
Sobre a vizinhança, critica o populismo e a falta de boas maneiras de Javier Milei na Argentina. Celebra o peso da democracia uruguaia, mas não ignora que o país tem problemas. “Os grandes desafios são ainda ser um país de renda média e ter cada vez mais gente na marginalidade.”
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PERGUNTA – Como interpretar o retorno da esquerda após esses últimos cinco anos com a centro-direita?
JULIO MARÍA SANGUINETTI – Acredito que não se deve colocar uma etiqueta ideológica nos governos, porque o Uruguai tem um Estado construído nos primeiros 30 anos do século 20 como uma pioneira social-democracia.
Esse Estado pode ser administrado de uma maneira um pouco mais liberal ou mais intervencionista, mas sempre é o mesmo modelo. Pode ser um pouco mais ortodoxa ou menos ortodoxa economicamente.
Mas também nisso há um consenso muito maior: o próprio Orsi disse que não vai aumentar impostos, que vamos manter os equilíbrios econômicos, e anunciou como ministro da Economia alguém historicamente vinculado à atividade empresarial [Gabriel Oddone].
A eleição não expressou um tema ideológico. No primeiro turno, em soma de votos, ganha a Coalizão Republicana. Não houve uma guinada à esquerda. É no segundo turno que muda. Quer dizer que há fatores políticos que modificaram a situação.
P – E o que aconteceu nesse período entre turnos?
JMS – Primeiro que, após outubro, quando foi eleito o Parlamento, houve uma grande queda de atividade política dos deputados e senadores eleitos do Partido Nacional. O deputado em outubro estava envolvido, colocava dinheiro. Ontem, no dia do segundo turno, tirava soneca à tarde.
Mas a Frente manteve esse trabalho de base. A meu ver, foi a mística que criou meu colega Pepe Mujica. Com seus discursos de final de vida, discursos emotivos do doente de câncer que está em situação grave, ao pé da morte. Tudo isso foi uma carga emotiva que deu à Frente o espírito de sair para lutar em todos os lados.
E a Coalizão Republicana concentrou-se muito na candidatura de [Álvaro] Delgado, que fez uma boa campanha, mas faltou o foco nesses outros partidos pequenos, que são votos soltos que ficavam vagos. A Coalizão perdeu 40 mil votos do primeiro para o segundo turno.
P – Alguns dizem que a Coalizão tem de agir como a Frente: consolidar uma aliança com apenas um candidato. O que acha? É algo possível para o futuro?
JMS – Sim, eu acredito que é possível. Não sei se é necessário, mas acredito que é possível. É evidente que o bipartidarismo tradicional do Uruguai tem se reconfigurado. De 1830 até 1980 ou 1990, o Uruguai foi um país bipartidário clássico [partidos Nacional e Colorado]. Depois aí começa a aparecer o crescimento da terceira força devido à construção da Frente Ampla. Eu acredito que muito provavelmente isso termine em uma coalizão consolidada.
P – Mas isso é curto prazo, longo prazo? Há debates fortes?
JMS – Ainda não começaram os debates, não houve a digestão do processo eleitoral.
P – Mas para 2029 há alguma chance?
JMS – Acredito que sim. Muito provável. Mas não chamo de centro-direita. Diria que a Coalizão é centro, centro.
P – O governo Lula está muito animado com a vitória de Orsi. Teremos mudanças significativas?
JMS – Em termos de política externa talvez sim, na medida em que o atual governo estava muito empenhado em conseguir um Mercosul mais aberto. A Frente Ampla não acredito que vá ter essa ênfase.
Mas isso, em qualquer caso, também era um debate retórico porque um acordo com a China já estava travado. É como aqueles que ainda sonham com o acordo do Mercosul com União Europeia, que não vai existir. Hoje a França está radicalmente contra, porque os governos franceses não resistem à pressão agrícola.
A Frente Ampla teve sua atitude contemplativa com a Venezuela, por exemplo, mas depois teve que reconhecer que isso era uma ditadura, que ali não havia respeito à legalidade, algo parecido com o que aconteceu com o governo do Brasil.
P – Os vizinhos do Uruguai seguem com a relação bilateral, mas, a nível presidencial, Lula e Milei não conversam. O Uruguai pode ajudar?
JMS – O Uruguai sempre teve esse papel, de ser um lugar de equilíbrio.
P – Mas antes não tinha um Milei.
JMS – O que ocorre é que o governo argentino ainda não tem definida uma linha clara. Três flashes do governo Milei: primeiro, tem uma utopia anarcocapitalista, como ele chama, que do meu ponto de vista nem é desejável nem é possível.
Segundo, se nesse caminho ele conseguir pelo menos baixar a inflação e ordenar as contas mais ou menos de um Estado tão desarticulado, pode deixar algum legado. Terceiro, infelizmente isso de bom que está fazendo não o faz com boas maneiras e bons modos, mas com procedimentos muito agressivos.
P – Há três flashes do governo Lula?
JMS – O governo Lula tem diferença essencial. Não é um governo populista, é um governo institucional. Milei é um líder populista. O populismo não é uma ideologia, é uma metodologia para a conquista e conservação do poder usando o poder do Estado e o apelo às emoções, às paixões, aos preconceitos da população usando o poder do Estado à beira da institucionalidade.
P – O que falta à democracia uruguaia após 40 anos?
JMS – Democracia é um sistema de governo. Não assegura um bom governo. O que, sim, assegura, como diz Karl Popper, é um método pacífico para podermos nos livrar de um governo de que não gostamos.
A democracia também não vai assegurar a felicidade. Nem é seu propósito. O que estabelece são regras do jogo equitativas para que o poder cidadão possa se expressar.
E em qualquer caso, está demonstrado que, quando em nome de problemas sociais se desprezou a democracia, terminou-se perdendo a liberdade e não resolvendo os problemas sociais. Já não há necessidade de mais demonstrações de que hipotecar a liberdade em troca de uma suposta promessa de igualdade social é um erro trágico, do qual ainda temos um testemunho horrível na situação patética de Cuba.
A democracia uruguaia é sólida e está sólida. Agora, o país como país tem problemas. Crescemos razoavelmente, temos um sistema de proteção social amplo, temos paz social.
P – Onde estão os desafios fortes?
JMS – Na economia, o maior desafio que temos é que estamos na típica armadilha da renda média. Ou seja, o Uruguai é o país com PIB per capita mais alto da América Latina, é um dos primeiros em desenvolvimento humano, mas hoje dificilmente pode sustentar esse desenvolvimento com sua atual produção, tem que diversificar ainda mais.
Em segundo lugar, no social, temos um problema de marginalidade, que vai continuar se acentuando na medida em que não conseguirmos realmente incorporar um setor que, por sua vez, com a influência do narcotráfico, consolidou-se. A chave está na educação.
Raio-X | Julio María Sanguinetti, 88
Advogado e jornalista, foi duas vezes presidente (19851990 e 19952000). Membro do Partido Colorado, desempenhou um papel crucial na redemocratização do país após a ditadura militar (19731985).
MAYARA PAIXÃO / Folhapress