BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – A agricultura emprega 8,7 milhões de pessoas na Europa, um pouco mais do que o atacado e varejo que vende seus produtos, com 8,4 milhões de funcionários. Quando o número analisado é o valor que cada parte acrescenta na cadeia de alimentos, a gangorra se mexe: 173,9 bilhões de euros para quem produz, contra 293 bilhões para quem vende.
Os dados fazem parte de um relatório da EuroCommerce, que defende os interesses de supermercados europeus e que recentemente aderiu um abaixo-assinado de 78 federações pedindo a aprovação rápida do acordo União Europeia-Mercosul. A principal razão é que ele ajudaria “a mitigar os desafios impostos pela instabilidade geopolítica e pelas interrupções na cadeia de suprimentos”.
Entre os membros da EuroCommerce está a FDC, a entidade patronal dos supermercados franceses, presidida por Alexandre Bompard. No mesmo dia da divulgação do abaixo-assinado pró-Mercosul, Bompard, CEO do grupo Carrefour, foi às redes sociais dizer que seu grupo não mais compraria carne proveniente do bloco sul-americano
O descompasso reforça a impressão de que o executivo tomou uma decisão política ao divulgar a carta enviada para o principal dirigente dos sindicatos de agricultores franceses, na última semana. Nela, Bompard não apenas anunciou que a rede deixaria de comprar carne bovina e suíça da América do Sul, como também instou bares e restaurantes a se engajarem em sua campanha.
Diferentemente do supermercado, que compra 97% da carne que comercializa no mercado interno, o setor de refeições, responsável por um terço do consumo francês, importa 60%. Bompard fez ainda uma breve menção ao padrão do produto vindo do Mercosul, que não seguiria as mesmas “exigências e normas” exigidas dos europeus.
O trecho, que virou “qualidade sanitária” na fala de Carlos Fávaro, ministro da agricultura, deixa pouca margem de manobra para o grupo francês, que obtém mais de um quinto de seu faturamento no Brasil.
Bompard, pelo tom e pelo conteúdo, mirava o cenário doméstico na França. Por isso mesmo, virou notícia no país, na semana passada, por se perfilar ao lado dos agricultores, como quase todos os políticos do país. As ameaças de boicote no Brasil só chegaram à mídia local neste domingo (24), em tom de curiosidade, após despacho da agência AFP.
Até então, o cálculo de Bompard fazia sentido. A terceira cadeia de supermercados franceses aderiu a seu chamado, e a primeira se apressou a dizer que 99% de sua carne vinha dos pastos franceses. O Carrefour, com cerca de 20% do mercado francês, está entre as duas. A começar pelo presidente, Emmanuel Macron, a França é contra o acordo. Alemanha, Espanha e Itália, entre outros, com diferentes pesos e interesses na balança, são a favor.
Agricultura na Europa é terreno normalmente minado. Os fortes subsídios à atividade têm razões históricas, econômicas e sociais. No último fim de semana, em Berlim, uma faixa alertava durante manifestação de fazendeiros, umas das muitas que ocorreram no continente nos últimos dias: “Não impeçam que nossos filhos também sejam agricultores”.
O apelo existencial tem razões demográficas. O abandono do campo é realidade na maioria dos países. A isso se somam os apelos ambientais e sanitários. A carne do Mercosul atravessa um oceano para chegar aos pratos europeus e não seguiria os rígidos padrões de criação europeu. O consumidor parece concordar, se o termômetro for a gôndola: 89% da carne vendida nos supermercados franceses é local.
Bompard, 52, formado na renomada ENA (École Nationale d’Administration) e com passagens por grandes empresas francesas, como Canal Plus e Fnac, sabia o que estava fazendo quando condenou o Mercosul. O assunto é muito importante na política francesa, e a eloquência do ato se justifica quando se nota que o país pode virar voto vencido na disputa.
A Comissão Europeia discute dividir a análise do acordo com o Mercosul. Com apenas a parte comercial em jogo, a votação pode ser resolvida apenas no Parlamento europeu, onde a França parece estar em evidente minoria.
A reportagem tentou sem sucesso contato com o Carrefour na Europa, Bompard e o sindicato de agricultores da França.
JOSÉ HENRIQUE MARIANTE / Folhapress