SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O local onde fica hoje o bairro da Aclimação, na região central de São Paulo, há 200 anos era ocupado por sítios que circundavam o caminho para o povoado de Santo Amaro. Era um lugar bucólico e, àquela época, distante do centro.
Por isso, foi escolhido para sediar, numa chácara que tinha o sugestivo apelido de Quebra-Bunda, um aparelho paramilitar que tinha a função nada nobre de torturar e castigar escravizados que haviam desagradado seus senhores e cometido faltas. O nome da propriedade vinha do fato de que, normalmente, os negros saíam de lá descadeirados.
A chácara do Telégrafo, ou Quebra-Bunda, já foi objeto de crônicas de vários memorialistas que escreveram sobre São Paulo antigo, mas não se conheciam documentos que atestassem sua existência. Uma ata da Câmara Municipal de São Paulo, de 20 de junho de 1832, a qual a Folha de S.Paulo teve acesso, mostra que de fato ela existiu, mas não comprova a prática de torturas em suas dependências.
Situada no morro do Telégrafo, onde havia uma torre, a chácara do Quebra-Bunda funcionou no período em que São Paulo vivia o auge do ciclo do café.
Embora a escravidão ainda vigorasse, a cidade se modernizava, ganhava ares europeus e seus dirigentes queriam passar a imagem de uma metrópole moderna, que não compactuava com a barbárie dos castigos nos escravizados em praça pública, à vista de todos, como acontecia, por exemplo, no Rio de Janeiro.
“Os vereadores paulistas queriam uma cidade ‘civilizada’, de bons modos e, por isso, não é contraditório que não se castigasse publicamente, como se fazia em outras partes do império”, disse o cientista social Rafael Mantovani, que estudou o sistema prisional da cidade no século 19.
O jornalista Ernani Silva Bruno (1912-1986), em seu livro “Historia e Tradições da Cidade de São Paulo”, traz mais detalhes sobre o que acontecia nas propriedades clandestinas de castigos aos escravizados.
“Para castigar os escravos capturados depois das fugas, ou mesmo para ‘ensinar’ aqueles que não serviam direito aos seus senhores brancos, havia algumas chácaras bem aparelhadas nas vizinhanças da cidade. Uma delas ficou tristemente famosa, e um de seus nomes nasceu de sua função nesse tempo: a do Telégrafo ou Quebra-Bunda”.
Por “aparelhadas”, o cronista se referia a troncos, onde os negros eram amarrados e submetidos a açoites, praticados por funcionários daquelas chácaras. No caso da Quebra-Bunda, não se sabe de nenhuma atividade produtiva exercida naquele lugar que, ao que tudo indica, funcionava apenas para torturas.
Já o cronista Antonio Egydio Martins (1863-1930), que escreveu entre os anos de 1905 e 1910 no Diário Popular, jornal de José Maria Lisboa, conseguiu localizar o ponto exato em que ficava a chácara do Quebra-bunda, local depois ocupado por vias e prédios: “Entre as ruas dos Apeninos, Pires da Mota, Nilo e Paraíso”.
Em seu livro “São Paulo Antigo: 1554 -1910”, Martins traz ainda outro dado importante sobre o funcionamento da chácara: “Disciplinavam-se os escravos, aplicando-lhes surras, gratuitamente e por amizade aos respectivos senhores, ou, então, mediante o pagamento de qualquer quantia aos proprietários”.
A chácara do Quebra-Bunda pertencia ao comerciante José Veloso de Oliveira que, pelo que se sabe, engordava seu orçamento com esses “serviços” prestados.
A ata da Câmara Municipal de São Paulo, de 20 de junho de 1832, mostra que o proprietário da chácara do Quebra-Bunda tinha proximidade como o poder público, tanto assim que o local foi escolhido para guardar a pólvora da Fazenda Nacional.
Na ata, os vereadores falam de um “requerimento” dos moradores e proprietários das imediações da Casa da Pólvora, pedindo a remoção dela pelo iminente perigo de uma explosão.
“Resolveu-se levar ao conhecimento do excelentíssimo presidente da Província instando pela remoção já requisitada da pólvora pertencente à Fazenda Nacional ali existente, e apontando-se a casa do Telégrafo do Quebra-Bunda como própria ao depósito daquela pólvora”.
Para o pesquisador Renato Cymbalista, coordenador do grupo Lugares de Memória e Consciência (USP-CNPQ), a descoberta de locais ainda obscuros pela história oficial, como a chácara do Quebra-Bunda, traz avanços nas reflexões futuras.
“Se as políticas de patrimônio e memória só ficarem focadas naquilo que é consagrado pela história, que é monumental, seguiremos fazendo uma história conservadora e branca”, disse.
“Os lugares de memórias mais traumáticas nos ensinam sobre tensões e desigualdades do passado, muitas dessas tensões seguem não resolvidas no presente e precisam ser enfrentadas”.
FERNANDO GRANATO / Folhapress