SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A China não pode forçar a Rússia a parar a Guerra da Ucrânia, como cobra o presidente Volodimir Zelenski, mas sim trabalhar para que a ONU adote como oficial a proposta que apresentou com o Brasil para trazer os rivais à mesa de negociações.
Isso dito, nas últimas semanas houve avanços na tentativa de um cessar-fogo que abra caminho a tais conversas, visando uma solução definitiva para o conflito que virou a geopolítica pelo avesso em 2022. Ainda assim, não é algo que se resolva da noite para o dia.
A avaliação é do negociador chinês para o conflito, Li Hui, 71, que na quarta (31) esteve em Brasília conversando com o conselheiro internacional do governo Lula (PT), Celso Amorim, o assessor palaciano Ibrahim Abdulhak Neto e Eduardo Saboia, secretário do Itamaraty para Ásia e Pacífico.
Nesta quinta (1º), ele recebeu a Folha de S.Paulo em um hotel de São Paulo para a primeira entrevista exclusiva a um veículo não chinês desde que assumiu a missão, em maio do ano passado. É sua quarta viagem, a primeira para fora da Europa e da Rússia, e do Brasil ele segue para a África do Sul, de onde irá depois à Indonésia.
“Viajei metade do planeta”, brincou em russo, língua na qual é fluente foi embaixador em Moscou por dez anos, de 2009 a 2019. Naquele ano, o diplomata virou o representante especial de Assuntos Eurasianos do governo chinês.
Na véspera, Zelenski havia dito a jornalistas franceses em Kiev que “se a China quiser, ela pode forçar a Rússia a parar essa guerra”. “Eu não quero que eles ajam como mediadores, quero que eles coloquem pressão sobre a Rússia”, afirmou.
Ressaltando não ter lido as palavras do ucraniano, com quem já se encontrou, deu de ombros. “Isso não é realista, a China não é participante do conflito. A Rússia é um país independente e soberano, membro pleno do Conselho de Segurança da ONU. A China e a Rússia são parceiros estratégicos. Nós não podemos forçar a Rússia a fazer o que nós quisermos.”
Rejeitando a acusação ocidental e ucraniana de que a aliança entre Vladimir Putin e Xi Jinping torna Pequim um ator com lado na crise, ele afirmou que “busca uma solução objetiva e imparcial” e lembra o recente papel chinês em reaproximar tanto Irã com Arábia Saudita quanto Hamas e outras facções palestinas.
“A comunidade internacional considera que é preciso acumular condições para um cessar-fogo”, diz. Ao mesmo tempo, aponta que “não há solução simples”. “Este não é um conflito que se resolva da noite para o dia, e mentalidade de Guerra Fria não vai ajudar”, disse, alfinetando Estados Unidos e aliados, mas dissociando sua fala da bravata de Donald Trump de que acabaria com a guerra em um dia.
Ele relatou aos colegas brasileiros sua percepção dos últimos acontecimentos, que incluíram uma inédita coincidência de discurso em Kiev e Moscou acerca da hipótese de discutir a paz. Ela ocorreu após uma viagem do chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, à China na semana passada.
“Este é um conflito que pode se espalhar. Discutimos como de-escalar a situação e voltar às negociações”, disse. “Os ministros [Kuleba e seu par chinês, Wang Yi] discutiram de forma franca. Como você notou, houve sinais de ambos os lados desejando negociar, reiterando suas respectivas posições e condições.”
Aqui entra o nó principal. Kiev quer uma negociação a partir dos dez pontos que Zelenski publicou em 2022, demandas sem concessões aos russos. Já Putin disse que topa parar os combates se os vizinhos prometerem neutralidade, desarmamento e cederem cerca de 20% de seu território.
Questionado sobre o que a China acha disso, Li saiu pela tangente. Citou os pontos de partida de conversas elencados por Xi, que incluem o respeito à soberania territorial de todos e à Carta da ONU. Ponto para Zelenski.
Na sequência, falou sobre a necessidade de adoção do comunicado conjunto China-Brasil, de maio deste ano. Ponto para Putin: o texto de seis itens fala em suspender ganhos territoriais com um cessar-fogo, mas não cita a devolução das quatro regiões que o russo anexou e ainda não controla totalmente.
Ele aproveitou para criticar discretamente Kiev. “O presidente Zelenski diz que quer a Rússia na segunda conferência de paz, mas querem partido do comunicado da primeira, que é baseado nos seus dez pontos”, afirmou, referindo-se à cúpula realizada na Suíça em junho, à qual Moscou não foi convidada.
“A Rússia rejeita claramente ultimatos”, disse. Os chineses não foram à reunião, e o Brasil, como lembrou Li, “enviou apenas uma embaixadora como observadora” e não houve consenso sobre o texto final.
Para críticos da posição chinesa, Xi apenas busca ganhar tempo enquanto Putin tem um ano de ganhos lentos, mas constantes.
Ainda assim, relatos colhidos pela Folha de S.Paulo em Moscou batem com a visão de Li acerca de avanços rumo a uma negociação, algo que não ocorria desde o colapso das conversas em 2022. A entrevista ocorreu antes da divulgação da grande troca de reféns entre Rússia e Ocidente, que pode azeitar ainda mais as discussões.
Os representantes da China e do Brasil na ONU enviaram carta ao secretário-geral da entidade, o português António Guterres, pedindo que a proposta deles seja adotada na Assembleia-Geral de setembro. Não houve resposta ainda. Na contas de Li, 110 nações apoiam o documento.
Li disse que escolheu países fora da zona de conflito para vender seu peixe porque a guerra “tem impacto global e nenhum país pode ficar indiferente”. “A segurança energética e alimentar da Ásia, África e América Latina que foi severamente afetada”, disse.
“São países bastantes distantes do campo de batalha e do meu país. Mas dividem a mesma aspiração”, disse. A China vem cortejando o que ele mesmo chamou de Sul Global, um termo de prateleira para países não alinhados automaticamente a Pequim ou a Washington na Guerra Fria 2.0 em curso.
Questionado acerca da acusação ocidental de que os chineses fomentam o esforço de guerra russo ao fornecer equipamentos que podem acabar em armas, como chips, Li diz: “Os EUA estão espalhando desinformação”.
“Nós não fornecemos nenhuma arma letal. Controlamos o que exportamos, inclusive drones de uso civil”, disse.
Sobre as sanções que vêm sendo aplicadas a bancos e empresas chinesas de forma indireta por isso, ele ironizou: “Múltiplas fontes mostram que 60% dos componentes de armas [russas] encontradas nos campos de batalha vêm do Ocidente. Eles deviam sancionar as empresas deles”.
A PROPOSTA CHINA-BRASIL
Fim da expansão do campo de batalha, não escalara ataques e cessar provocações;
Diálogo para um cessar-fogo, realização de conferência com os rivais em igualdade de direitos;
Aumentar a ajuda humanitária, incentivar troca de prisioneiros e prevenir violência contra civis;
Rejeição do uso de armas de destruição em massa, prevenir crise nuclear;
Vetar ataques de lado a lado perto de instalações nucleares;
Negar a divisão do mundo em blocos nos debates, promover integração econômica.
IGOR GIELOW / Folhapress