Cidades devastadas por enchentes no RS têm casas abandonadas e comércio vazio

MUÇUM, RS, ROCA SALES, RS E CRUZEIRO DO SUL, RS (FOLHAPRESS) – Símbolos das enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul, os municípios de Roca Sales, Muçum e Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari, ainda exibem em suas ruas feridas abertas da tragédia –que completa seis meses nesta terça (29).

As marcas vão além do visível rastro de destruição material e avançam de forma profunda no tecido social e econômico dessas cidades, que agora convivem com casas abandonadas, comércio esvaziado, anúncios de venda ou aluguel e migração involuntária de moradores.

É como se as ruas quase desertas tornassem palpável o sentimento de melancolia que toma conta das cidades, mais de um ano após o início de uma sequência de três enchentes, ocorridas de setembro de 2023 a maio de 2024. Em todo o estado, 245 pessoas morreram e milhares ficaram desalojadas ou desabrigadas.

“Depois de setembro e novembro, a gente conseguiu gerar um sentimento de pertencimento, de autoestima, de recuperação mais rapidamente. Só que a reincidência torna isso praticamente impossível”, diz Mateus Trojan, prefeito de Muçum (a 154 km de Porto Alegre).

“As pessoas ainda estão muito marcadas, num ponto ainda de desmotivação. Até pela impossibilidade de as famílias conseguirem reagir com forças próprias, como conseguiram nas outras vezes. Elas esgotaram a sua capacidade de reinvestimento, de endividamento”, afirma.

Segundo ele, Muçum é hoje uma cidade triste. Tanto pelos que partiram quanto pelo trauma que assombra aqueles que ficaram.

O prefeito estima que cerca de 600 pessoas ainda estão fora do município, cerca de 13% da população de 4.694 pessoas. O vazio nas ruas, no entanto, dá a impressão de uma evasão maior.

A economia local também sente os efeitos. Marco Antonio Vendramini, 59, é dono de um mercadinho na avenida Fernando Ferrari, região central da cidade, e traduz a situação ao se apresentar: “Tentando ser um comerciante.”

Ele tem experiência com enchentes. Abriu sua primeira bodega em 1993, do outro lado da rua, e depois a converteu em um mercadinho. Lá, pegou cinco ou seis enchentes até que decidiu se mudar em busca de proteção.

Construiu um novo prédio com piso elevado e pé-direito alto, equivalente ao de uma casa de dois andares. Mesmo assim, foi atingido pelas três enchentes do último ano -em uma delas, a água bateu no teto.

O comerciante conseguiu reabrir em agosto, três meses após os eventos de maio. Priorizou a reconstrução do negócio em detrimento da própria casa, cujo telhado segue esburacado. Voluntários ajudaram na limpeza, mas os vestígios da lama ainda são visíveis em mercadorias não perecíveis, como chinelos e sacos de prego, vendidos com desconto para tentar minimizar o prejuízo.

“Perdi uma parte da mercadoria, mas o que mais perdi foram os consumidores, que debandaram da cidade”, diz ele, que conhece os clientes pelo nome.

Segundo Vendramini, as vendas de hoje representam apenas 25% do que eram antes da tragédia. A queda no faturamento o forçou a dispensar um de seus dois funcionários e atuar como um faz-tudo, da limpeza à manutenção, do caixa à reposição do estoque. “Estou me virando para segurar as portas abertas”, diz.

O comerciante afirma ter uma pequena esperança de que as coisas voltem, ainda que devagarinho. Em meio a tímidas risadas, ele deixa transparecer sua insegurança sobre o futuro, já que as novas casas serão construídas em áreas mais altas, longe do atual centro da cidade.

“O meu plano, por enquanto, é ficar aqui até o final do ano, dar um tempo, ver se realmente o pessoal quer voltar. O comerciante tem que ir aonde tem consumidor, não adianta ficar onde não tem ninguém. Aqui já não tinha muito, e agora diminuiu”, diz.

E se as famílias não voltarem, o mercado vai fechar? “Provavelmente. Se eu fosse mais jovem, sairia daqui, começava outro negócio, em uma outra cidade, livre dessa assombração. Na minha idade, abrir outro negócio já é bastante crítico. Então, acho que vou me esconder da morte. Vou fazer o quê?”.

O quadro é similar em Cruzeiro do Sul, a 123 km de Porto Alegre. Pontos comerciais antes cobiçados no centro agora estão vazios.

Ricardo Schneider, 35, é dono de um restaurante e viu o movimento cair em 20% a 25%. Ele também tinha um café, que precisou fechar. O principal desafio é conseguir mão de obra. “Não tem gente para trabalhar”, afirma ele, que preside a Associação Comercial e Industrial de Cruzeiro do Sul.

Uma parte dos 12,6 mil habitantes decidiu ir embora do município, um dos mais afetados pelas enchentes. Lá ficava o bairro Passo de Estrela, reduzido a escombros pela virulência do rio Taquari -o local ainda parece um cemitério de casas, uma incômoda lembrança da tragédia que devastou a cidade.

Em Roca Sales, a 143 km da capital, o morador Arthur José de Vargas, 79, transmite no olhar a tristeza de quem já perdeu a esperança de ver seu município recuperado outra vez. “Eu vou lhe dizer. Com a idade que nós dois temos, nem em 20 anos. Não vai acontecer. E aqui tem firma entrando, mas não vai conseguir, não. Porque empobrecemos tudo junto”, diz ao lado da mulher, Zilda de Vargas, 82.

“Eu perdi tudo, fiquei sem nada”, diz ele, tendo logo atrás o rastro de destruição deixado pelo Taquari.

Nas enchentes de setembro e maio, o rio caudaloso não fez a curva: extravasou para o centro da cidade e se sobrepôs ao que era antes o arroio Sete de Setembro. A força da água arrastou prédios inteiros.

Na casa dos Vargas, dois dos três andares alagaram, e a garagem com as relíquias de um típico gaúcho, como churrasqueira e fogão campeiro, foi levada.

“Mas me recuperei. Estou chegando nos 80, mas estou trabalhando. Fazer o quê? Agora eu estou fazendo isso aí”, conta, apontando para uma vala aberta para alargar a fossa sanitária.

O trabalho braçal é uma tentativa de reformar a casa, possivelmente para alugar, já que os filhos não querem que o casal retorne ao local. Ainda assim, Arthur afirma que sair é uma decisão difícil.

IDIANA TOMAZELLI E PEDRO LADEIRA / Folhapress

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