Cidades na Ucrânia tentam se reconstruir ainda em meio a bombardeios e apagões

KIEV, UCRÂNIA (FOLHAPRESS) – Irpin, município a cerca de 25 km de Kiev, tinha como lema “uma cidade para se viver”. Em 2017, ganhou um prêmio por seus espaços verdes. Em 2021, foi listado entre os dez melhores lugares para se fazer negócios na Ucrânia pela edição local da revista Forbes.

Então veio a guerra —e Irpin, uma das cidades próximas da capital tomadas pela Rússia no início do conflito, passou a ser associada à destruição. Mais de 300 civis morreram, e 70% dos prédios foram danificados. Embora a ocupação tenha durado pouco mais de um mês, alguns dos problemas causados por ela persistem ainda hoje, como a presença de minas explosivas nos reservatórios de água municipais.

Agora, a cidade tenta se reerguer, e quando a Folha de S.Paulo a visitou, no final de maio, era possível observar diversos prédios sendo construídos na área. O mesmo se dava com outras localidades a princípio capturadas pelos russos e depois reconquistadas pelo Exército ucraniano na região de Kiev.

Segundo o Dream, portal do governo ucraniano que permite acompanhar a situação dos projetos de reconstrução no país, a região de Kiev reúne 20% das iniciativas do tipo, mais do que qualquer outra.

Pode parecer estranho iniciar obras como essas em meio a uma guerra ainda em curso, quando a possibilidade de bombardeios e apagões está sempre à espreita. Mas as razões são muitas.

Primeiramente, é preciso restaurar infraestruturas básicas, como usinas, redes de comunicação, rodovias, ferrovias e hospitais, assim que são danificadas, ou arrisca-se uma paralisação generalizada.

Além disso, os cerca de 6,5 milhões de ucranianos que deixaram o país desde o início do conflito nas contas da Acnur, agência da ONU para refugiados, precisam de um motivo para voltar.

Por fim, há quem defenda que a reconstrução pode ser uma oportunidade de tornar a Ucrânia mais sustentável, fortalecendo sua candidatura à União Europeia. Edifícios soviéticos danificados, por exemplo, poderiam se tornar mais eficientes em termos de eletricidade e resilientes às mudanças climáticas. No setor de transportes, o incentivo a meios de locomoção públicos e a veículos elétricos facilitaria o processo de descarbonização.

Um relatório do Banco Mundial elaborado em conjunto com a UE, a ONU e o governo ucraniano e atualizado este ano estima em US$ 486 bilhões o custo para recuperar a economia do país até 2033. Desse total, eram necessários US$ 9,5 bilhões só para reparos urgentes a serem realizados este ano, US$ 4 bilhões dos quais não tinham sido arrecadados até a divulgação do estudo.

Os setores que mais precisam de investimento são habitação (17%), transporte (15%), comércio e indústria (14%), agricultura (12%), energia (10%), segurança social (9%) e gestão de explosivos (7%).

A falta de moradia era a maior queixa dos habitantes de Borodianka, a cerca de 55 km de Kiev, com quem a reportagem conversou.

A prefeita, Irina Zakhartchenko, disse que a cidade hoje tem 20 mil habitantes, 6.000 a menos do que antes do conflito. Destes, ao menos mil “não podem retornar porque não têm onde morar”.

“Não esperava ficar sem lugar para morar em uma idade tão avançada”, afirmou a aposentada Hanna, 78. Ela contou que morava com estranhos em uma habitação emergencial montada em um contêiner. Questionada sobre qual era o seu maior medo naquele momento, respondeu que um deles era “morrer sem casa”.

Apesar de a área de habitação ter sido a mais prejudicada pelos confrontos, Timofii Milovanov, ex-ministro do Desenvolvimento Econômico, Comércio e Agricultura da Ucrânia e diretor da Escola de Economia de Kiev, diz não achar que ela representa o maior obstáculo para a recuperação do país.

“Mesmo antes da guerra, o setor imobiliário da Ucrânia tinha uma grande capacidade ociosa”, afirma. “Muitas propriedades precisam de reformas, mas estão disponíveis para uso. Apartamentos que antes serviam como investimento agora estão desocupados. Estamos falando de dezenas, senão centenas de milhões de metros quadrados.”

Para ele, o principal desafio será reconstituir a força de trabalho doméstica. O economista diz que o mercado de trabalho interno já apresentava problemas estruturais desde antes da invasão russa, com mais demanda do que oferta de mão de obra.

A emigração em massa e o alistamento militar obrigatório reduziram ainda mais essa força de trabalho, que foi de 17 milhões de pessoas para de 12 a 13 milhões de pessoas. “O setor de construção, por exemplo, já está contratando imigrantes, pois foi atingido com força pelo recrutamento do Exército”, afirma Milovanov.

Ele destaca, porém, que se o problema é humano, a solução também é. “Requalificar esses trabalhadores e aperfeiçoar suas habilidades é crucial, agora e no pós-guerra. O resto virá naturalmente.”

Enquanto isso, muitos ucranianos convivem com os vestígios da invasão. Em determinados casos, isso ocorre por falta de verbas para reformar ou demolir prédios arruinados. É o caso da rua central de Borodianka, completamente destruída depois de ser atingida por duas bombas de 500 kg.

Zakhartchenko, a prefeita, afirma que institutos americanos calculam que a reconstrução da cidade vá custar cerca de US$ 105 milhões. Ela morava em um dos apartamentos no quarteirão —seus interiores hoje estão completamente à vista, como casas de bonecas em tamanho real.

Em algumas outras localidades, no entanto, as lembranças da ocupação foram mantidas de propósito. A cidade de Butcha, palco de um dos episódios mais macabros da guerra situada a cerca de 30 km de Kiev, listou os nomes de cada um dos cerca de 500 civis que morreram nas mãos dos russos em um memorial erguido em uma igreja local, por exemplo.

Em Irpin, carros e caminhões destruídos pelos russos foram todos levados para um mesmo lugar, descrito por moradores como um “cemitério de automóveis”. Uma ponte explodida pelo próprio Exército ucraniano para impedir os tanques russos de cruzar em direção à capital continua arruinada —uma nova rodovia foi construída ao seu lado, mas a ideia da prefeitura é manter os destroços da antiga ali para que ninguém esqueça o que os habitantes locais fizeram para proteger Kiev.

A estudante de jornalismo Daria, 19, conta que se lembra do exato momento em que, ao voltar para Irpin, pouco depois de sua reconquista pelos ucranianos, avistou a ponte destruída. A sensação, ela diz, era de estar diante da morte.

CLARA BALBI / Folhapress

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