Cildo Meireles relê o dia a dia entre cadeiras retalhadas e desenhos provocativos

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Isto não é um guarda-chuva. Ainda que pareça, o objeto se transformou numa tela quando o artista Cildo Meireles deu pinceladas no tecido da cobertura do item. É também o que fez com o banco, a maca e a cadeira de praia instaladas em uma das salas da galeria Luisa Strina, na zona oeste de São Paulo.

Os trabalhos fazem parte da exposição “Uma e Algumas Cadeiras / Camuflagens”, mostra em que Meireles -um dos maiores artistas brasileiros em atividade, aos 76- embaralha as fronteiras entre forma e função para transformar objetos corriqueiros em obras de arte.

Na mostra, Meireles expôs uma barraca de acampar que foi convertida em superfície plana e fixada na parede. Com isso, ela perdeu a sua utilidade primária de fornecer abrigo. “São pinturas camufladas em coisas funcionais”, diz Meireles, em diálogo com Marcel Duchamp e o “ready-made” -isto é, artefatos que se apropriam de artigos do cotidiano. “Lembro de ter ouvido que a arte é uma espécie de inutilidade indispensável. Penso do mesmo jeito.”

O artista brinca com a materialidade na instalação “Uma e Sete Cadeiras”, em que expõe esses objetos de maneiras não convencionais. Um deles foi reduzido a cinzas e está armazenado em um recipiente transparente. O outro foi triturado até virar serragem.

Há ainda um totem feito com 110 lâminas de vidro dentro do qual parece haver uma cadeira. Para chegar a esse efeito, Meireles pintou cada uma das lâminas com tinta acrílica até chegar ao formato do objeto.

“Meireles usa esses recursos para desmistificar o olhar e o lugar da cadeira como um signo único”, diz o pesquisador Diego Matos, autor de um texto crítico sobre a exposição. “Ele desconstrói a ordem do signo. Se a gente olhar bem, são sete peças que mostram cadeiras, só que de diferentes formas.”

Montada pela primeira vez na galeria Lelong, em Nova York, a instalação é uma referência a “Uma e Três Cadeiras”, célebre trabalho do artista conceitual Joseph Kosuth. Nele, o americano posicionou lado a lado uma cadeira, a foto dessa cadeira e um papel com o significado da palavra cadeira no dicionário.

Com a obra, Kosuth lança uma pergunta ao público -qual das três representações sintetiza melhor a essência do objeto? A palavra, a imagem ou o objeto em si? De certa forma, a resposta está na própria obra.

Ao colocar as três representações no mesmo nível, é como se ele afirmasse, implicitamente, que a ideia é tão importante quanto a materialidade das coisas -um pressuposto, aliás, central na arte conceitual.

Nesse movimento, Meireles também se firmou como um dos artistas brasileiros mais celebrados no exterior. No ano passado, recebeu o prêmio Roswitha Haftmann, considerada a maior láurea de arte da Europa. Em 2008, tornou-se o segundo brasileiro a ter uma exposição retrospectiva no Tate Modern, em Londres. O primeiro foi Hélio Oiticica, em 2007.

Participou ainda de sucessivas edições das bienais de Veneza e São Paulo. Tem obras em instituições como Museum of Modern Art, o MoMA, Masp, Pinacoteca de São Paulo e Centre Georges Pompidou.

“O Cildo faz com que as pessoas percebam a arte para além dos olhos e passem a usar outros sentidos. É como se a gente sempre estivesse sendo traído pelo olhar”, afirma Matos, que estudou a produção de Meireles em sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo.

O pesquisador também assina outro texto crítico para a mostra “Cildo Meireles: Desenhos, 1964-1977”, na galeria Galatea, em simultâneo à exposição na Luisa Strina.

Embora o artista seja mais conhecido pelas instalações, o desenho é a prática mais constante em sua carreira. Ele deu os primeiros passos na arte ainda na adolescência após ir a uma exposição que exibia obras vindas do Senegal.

A partir daí, passou a fazer desenhos inspirados em máscaras africanas. Um deles foi escolhido para compor a exposição na Galatea. A mostra traz ainda um desenho de 1965 que lembra policiais militares munidos de escudos e capacetes.

“Mesmo quando os desenhos parecem ser um pouco mais inocentes, há sempre uma provocação e uma insinuação por trás”, diz Tomás Toledo, sócio da galeria e curador da mostra. “O que me encanta é esse uso dos desenhos para fins extremamente sofisticados e conceituais.”

Algumas das obras põem em evidência também a arquitetura. Isso acontece por meio da representação de ambientes domésticos, com suas paredes e rodapés, elementos que permeiam a produção do artista.

Uma de suas criações mais famosas é a série “Espaços Virtuais: Cantos”, que lhe valeu um prêmio no salão da bússola do MAM-Rio. Com 44 projetos, o trabalho mostra frestas que surgem a partir do encontro de dois planos, representados pelas paredes.

O artista ficou tão imerso nesse trabalho que parou de desenhar durante cinco anos. “Não achei que fosse honesto fazer as duas coisas ao mesmo tempo”, diz ele, acrescentando que se arrepende da decisão. “O desenho ainda é a maneira mais rápida de passar uma coisa da cabeça para o papel. É uma forma de materializar uma ideia de forma imediata e instantânea.”

Outra obra emblemática é a instalação “Desvio para o Vermelho”, em que mobiliou uma sala de estar com objetos de tons rubros. A cor está presente até mesmo na água que jorra de uma torneira.

Montada pela primeira vez em 1984 e hoje instalada na galeria dedicada a Meireles no Instituto Inhotim, em Minas Gerais, a obra ganhou interpretações políticas ao longo dos anos. Algumas pessoas defendem que se trata de uma crítica à violência da ditadura e à alienação de uma classe média mais preocupada com bens de consumo do que com os rumos do Brasil.

Meireles, porém, não concebeu o trabalho pensando nisso. “Para mim, não era uma experiência política, e sim poética e cromática.”

“Inserções em Circuitos Ideológicos”, também em Inhotim, por outro lado, é um trabalho de inegável verve política. Criado em 1970, ele consistia na impressão de mensagens críticas ao regime militar em garrafas de Coca-Cola.

O artista também carimbou notas de dinheiro com a frase “Quem Matou Herzog?”, em referência à morte do jornalista Vladimir Herzog nas mãos dos militares.

A obra é possivelmente o seu trabalho mais conhecido. Apesar disso, nunca quis fazer dele uma marca. “Não fazia sentido transformar o ‘Inserções’ num estilo”, diz Meireles. “Isso corta qualquer possibilidade de ampliação. Estilo é a morte do artista.”

Uma e Algumas Cadeiras/Camuflagens

Quando Seg. à sex., das 10h às 19h. Sáb, das 10h às 17h. Até 30 de novembro

Onde Galeria Luisa Strina – Rua Padre João Manuel, 755 – Cerqueira César

Preço Gratuito

Cildo Meireles: Desenhos, 1964-1977

Quando Seg. à qui., das 10h às 19h. Sex. das 10h às 18h. Sáb., das 11h às 17h. Até 1º de novembro

Onde Galeria Galate – Rua Padre João Manuel, 808

Preço Gratuito

MATHEUS ROCHA / Folhapress

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