CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Mais do que contar histórias, o norueguês Joachim Trier parece interessado em analisar emoções complexas. Seu novo filme, “Sentimental Value”, que concorre à Palma de Ouro, tem uma narrativa relativamente simples e sem grandes reviravoltas, em contraposição à densa bagagem emocional de seus personagens.
No filme, acompanhamos Nora e Agnes, que acabaram de perder a mãe. Seu pai, Gustav, um diretor de cinema reconhecido, aparece depois de muito tempo sem manter contato e diz que deseja gravar um filme na casa onde a mãe das duas, e sua ex-mulher, morava. As irmãs cresceram naquele lugar, que antes do divórcio pertenceu à família de Gustav por gerações.
O pai insiste para que Nora, atriz de teatro, interprete a sua protagonista, mas a filha recusa. Então, contrata outra para o papel e, a partir daí, o filme se desenrola em cenas e diálogos às vezes barulhentos, outros silenciosos demais, entre o pai e as filhas, intercalados vez ou outra por flashbacks dos antigos habitantes da casa –em especial a mãe de Gustav e ele próprio quando criança.
Apesar de expurgar traumas familiares complexos, a narrativa se debruça mais sobre a relação entre Nora e o pai. Como filha mais velha, ela cuidou da irmã quando a mãe estava deprimida e o pai ausente e, adulta, sofre de crises de ansiedade e não consegue manter relações íntimas com ninguém além de Agnes.
Já Gustav é autocentrado e egoico, e sempre preferiu sua arte em relação às filhas. Com a idade avançada, porém, ele sofre com sua solidão e, ainda que não consiga expressar seus sentimentos, dedica o roteiro de seu filme para Nora. Ela, apesar do ressentimento que tem pelo pai, compartilha com ele a dificuldade de se relacionar com os outros.
Com uma narrativa igualmente simples e emocionalmente devastadora, o filme anterior de Trier, “A Pior Pessoa do Mundo”, conquistou o público e foi indicado ao Oscar de melhor filme internacional. Sua protagonista, Renate Reinsve, retorna agora em “Sentimental Value”, ou “valor sentimental”, ao lado de Stellan Skarsgard e Elle Fanning.
Marcado para o mesmo dia de “Sentimental Value”, “Romería” é outro filme na disputa pela Palma de Ouro a se debruçar sobre laços familiares, o que não é surpresa. O longa catalão, afinal, integra a trilogia que Carla Simón concebeu para lidar com o próprio passado.
Assim como “Verão 1993” e “Alcarràs”, seus dois outros longas, “Romería” é um longo estudo sobre relações de sangue e de criação. Acompanhamos Marina, uma jovem que, ao completar 18 anos, decide procurar a família de seus pais biológicos, mortos quando ela ainda era um bebê, para conseguir documentos exigidos pela universidade.
Ela passa de tio em tio, mirando sempre a linha de chegada, que são os avós que não conheceu, espinha dorsal daquela família e com fama de severos. Assim, o espectador vai descobrindo a história de Marina junto com ela, como se encaixasse as pecinhas de um quebra-cabeça.
Ao ler um diário ao espectador, ela também vai questionando se realmente tem afinidade com aqueles desconhecidos, ligados a ela pela genética, e se seria uma pessoa diferente caso tivesse sido criada por eles. Quando abrimos a lente, outra questão se apresenta -Marina cresceu na Catalunha, mas a família do pai é da Galícia.
Esta busca de identidade, aqui um tanto mais óbvia, é tema comum na seleção de Cannes deste ano. Bem como a importância da memória e de registros históricos, tema sobre o qual o brasileiro “O Agente Secreto” já havia versado na semana passada.
Com sua direção honesta e sensível, Simón entrega mais um forte candidato aos prêmios desta edição. Vale lembrar que, por mais nova que seja, a catalã já embolsou o Urso de Ouro em Berlim, por “Alcarràs”.
LEONARDO SANCHEZ E ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress
