SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Rodado em branco e preto em 1931, “Nossas Coisas” foi um dos primeiros filmes sonorizados do Brasil. Música, vozes e ruídos estavam perfeitamente sincronizados às imagens graças a novidade do sistema Vitaphone, criado há pouco pela Warner Bros. e que faria enorme sucesso comercial nos anos posteriores.
Mas o filme não resistiu ao incêndio de 2016 na Cinemateca Brasileira. Apenas seu trailer sobreviveu as chamas, e agora não corre mais riscos. O rolo de filme está entre os 1.785 recuperados e digitalizados pela Cinemateca através do projeto Viva Cinemateca, que pela primeira vez na história preserva de forma eficaz o seu acervo em nitrato de celulose, material altamente inflamável.
Os filmes recuperados foram realizados entre 1900 e 1955 e estão entre os 3.000 rolos que não pereceram às chamas, que há oito anos destruiram 962 obras. Apesar do dano irreparável, a tragédia era anunciada.
A Cinemateca passou por outros incêndios antes em 1957, 1979 e 1982, e as chamas consumiram, no total, metade de sua coleção original. Uma realidade dolorosa para o órgão que tem a missão de abrigar em um só lugar filmes garimpados em todo o território nacional –e fora dele, como foi o caso recente de “Amazonas, O Maior Rio do Mundo”, de Silvino Santos, primeiro filme rodado na Amazônia.
“Através desses materiais conhecemos a história social e cultural do Brasil. A preservação é muito cara, mas se quisermos ter memória do audiovisual brasileiro, é preciso investir”, disse Maria Dora Mourão, diretora da Cinemateca, em evento dedicado a anunciar a disponibilização dos filmes restaurados no site oficial Banco de Conteúdos Culturais e, em breve, na plataforma de streaming anunciada pelo Ministério da Cultura, ainda a ser lançado.
Entre outros títulos recuperados estão “Apuros do Genésio”, de 1940, um registro raro de Genésio Arruda, astro de “Acabaram-se os Otários”, primeiro filme sonoro brasileiro de 1929 e um trecho de “Barulho na Universidade”, primeiro longa de Watson Macedo, um dos principais diretores de chanchadas e o único em que ele aparece atuando.
Também foi encontrada uma gravação documental de festas na igreja de Santa Maria do Sul, no Rio Grande do Sul, de 1910, a mais antiga do acervo até o momento.
O nitrato de celulose era amplamente usado no começo do século 20 porque tinha boa maleabilidade e podia ser esticado facilmente em longas tiras, mas o plástico pode entrar facilmente em autocombustão por um simples atrito ou se ficar guardado em lugares quentes, por exemplo.
Sua preservação é custosa e requer rigor técnico. Os 1.785 filmes demoraram um ano e meio para serem digitalizados, um processo que custou R$ 15 milhões angariados por meio da Lei Rouanet e patrocínio do Instituto Cultural Vale, Shell, e do banco Itaú. “Os técnicos precisaram analisar frame por frame de cada rolo de filme para identificar corretamente as obras e trabalhar sobre possíveis estragos”, explica Mourão.
Por uma ironia cruel, o som do trailer de “Nossas Coisas” foi danificado pelo tempo. De uma briga entre amigos pela mesma mulher a um bêbado cortando cabelos em uma barbearia, o filme bem-humorado narrou pequenos tumultos cotidianos a uma plateia empolgada nas salas de cinema, há quase um século.
O trailer mostra imagens de pessoas tocando instrumentos musicais em um estúdio, provavelmente fazendo alusão à novidade do som que acompanhava a imagem. Hoje, porém, ele é exibido como uma sinfonia silenciosa. O que poderia ter sido?
Ainda é impossível contabilizar o acervo completo da Cinemateca e exatamente o que foi perdido, diz Mourão, devido às interrupções que o órgão sofreu ao longo das décadas com a troca de gestões e baixos financiamentos.
Mas agora, além dos filmes recuperados, o laboratório de imagem e som foi modernizado e uma equipe fixa irá prosseguir com a digitalização dos filmes em nitrato restantes, além daqueles que ainda serão recebidos.
O trabalho planeja reposicionar a Cinemateca Brasileira entre as melhores do mundo, segundo a diretora técnica do órgão, Gabriela de Souza Queiroz. A fama veio em várias ocasiões, uma delas quando foram encontrados rolos raros e únicos de filmes de Fritz Lang, célebre diretor de “Metropolis”, depois enviados à Berlim. “Mais de 80% do acervo foi duplicado. Nos próximos meses, será 100%”, afirma.
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress