SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) abriu uma investigação na corregedoria sobre um convênio entre a Arpen, associação que reúne os cartórios de registro civil do país, e a DataPrev.
A Arpen havia pedido ao CNJ, em julho do ano passado, a homologação de um convênio com a DataPrev para integrar e atualizar as principais bases de dados do governo. O pedido de convênio está em análise pelo corregedor nacional de Justiça, CNJ, ministro Luís Felipe Salomão.
Mas o CNJ agora investiga denúncia de que os cartórios se associaram a uma empresa privada para, com base em dados públicos acessados por meio do convênio com a DataPrev, oferecer a bancos serviços antifraude de confirmação de identidade, um negócio que pode movimentar R$ 1 bilhão por ano.
A investigação teve origem em uma carta enviada ao CNJ, órgão que regula os cartórios, em 21 de novembro por Célio Ribeiro, diretor-presidente do Instituto Internacional de Identificação (InterID).
Na carta, Célio apontava para uma “sociedade da Arpen com uma empresa privada na exploração de consulta de dados biográficos e biométricos, constituindo monetização de dados dos indivíduos em parceria exclusiva com os cartórios e com acesso ao banco de dados da Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social (Dataprev)”.
A Arpen entrou como sócia da empresa Confia em uma companhia chamada Gen.e, em 11 abril de 2023. Pouco antes, em 20 de março, a Gene havia sido transformada em uma sociedade anônima de capital fechado.
A Arpen afirma que a Gene prestará apenas serviços tecnológicos aos cartórios para estruturar os serviços de confirmação de identidade que serão vendidos para bancos e seguradoras e para a integração das bases de dados do governo e o registro civil.
Segundo o presidente da Arpen, Gustavo Fiscarelli, o convênio com a DataPrev, caso autorizado pelo CNJ, vai integrar as inúmeras bases de dados do governo que hoje em dia não se comunicam, como as do Ministério da Saúde, Bolsa Família, Ministério do Trabalho, e fará a conferência da identidade e conciliação de dados.
E a Arpen, por sua vez, prestará serviços a bancos, seguradoras, varejo sempre sem transferir os dados, apenas confirmando ou negando a informação consultada sobre óbito, estado civil, nascimento.
“Nós estamos tentando fazer de forma legal algo que esses birôs tipo Serasa e Boa Vista já fazem”, disse Fiscarelli à Folha de S.Paulo.
Embora a Arpen afirme que nem a Gene nem a Confia estejam oferecendo serviços pagos a bancos com base em associação com os cartórios, um diretor de um dos maiores bancos do país informou à Folha que foi procurado por um representante da Confia no final de novembro.
O representante teria oferecido serviços de checagem de identidade para evitar fraudes, afirmando ter acesso a dados em parceria com a Arpen e DataPrev.
Em uma mensagem enviada em grupo de WhatsApp de cartórios de Minas Gerais, um representante da Arpen no estado afirmou que, com o convênio com a DataPrev, eles ganhariam milhões de bancos, seguradoras e varejistas por consultas.
Ele disse também que os dados que os cartórios enviam ao Sistema Nacional de Informações de Registro Civil passariam a ser remunerados.
“Seria necessário comprovar interesse público e razoabilidade para que os dados do registro civil fossem usados em serviços cobrados”, diz Fabro Steibel, diretor executivo do Instituto Tecnologia e Sociedade (ITS), ressaltando a natureza dual dos cartórios, entidades privadas que prestam serviços públicos, por serem uma delegação do Poder Judiciário.
A Arpen argumenta que o artigo 29 da lei 6.015/73 e o provimento 66/2018 do CNJ permitem que eles vendam esses serviços.
A lei estabelece quer os cartórios são “ofícios da cidadania” e podem prestar outros serviços remunerados, por meio de convênios com órgãos públicos e entidades interessadas. Já o provimento especifica que os serviços podem ser prestados a entidades governamentais e privadas.
“Mas um potencial problema é os cartórios a se valerem da posição de privilégio de acesso a dados e fecharem acordo com a Confia ou a Gene, uma empresa privada, para prestar serviços pagos”, diz Steibel.
Indagado sobre o fato de o cartórios serem uma delegação do Poder Judiciário e fazerem uma sociedade com uma empresa privada para monetizar conferência de dados, Fiscarelli diz que eles têm autonomia.
“A Arpen é uma associação privada. Eu me uno a quem eu achar que tenho que unir. Os cartórios são uma delegação que prestam o serviço público com autonomia financeira e administrativa”, diz Fiscarelli.
“Se eu quiser fazer convênio, por exemplo, com o Bradesco, eu posso, sou entidade privada, quem vai me falar que não pode ou o que pode é o CNJ.”
Um dos donos da Confia Holding, sócia da Arpen, é Rafael Emrich Candelot. Candelot foi mencionado na Lava Jato por ter feito pagamentos para Eduardo Martins, filho do ex-ministro do STJ Humberto Martins.
Martins era o principal investigado da operação Esquema S, acusado de tráfico de influência numa negociação de R$ 40 milhões em honorários com a Fecomércio do Rio de Janeiro, supostamente para influenciar decisões do pai.
O Supremo Tribunal Federal (STF) arquivou a investigação. Candelot e Eduardo Martins foram sócios em uma empresa, a BP Participações. Humberto Martins, quando era corregedor no CNJ, em 2019, autorizou a Arpen a fazer um modelo de convênios.
A Confia Tecnologia, também presidida por Candelot, teve como sócio até agosto do ano passado o IRTDPJ Brasil, instituto que reúne cartórios de registros de títulos e documentos e de pessoas jurídicas.
Segundo Rainey Marinho, presidente do IRTPDJ, o instituto decidiu se retirar da sociedade porque “o rumo dos acordos operacionais e comerciais em desenvolvimento se distanciava de nossa especialidade”.
Rainey comanda um cartório em Maceió e tem relações próximas com o presidente da Câmara, Arthur Lira chegou até a se filiar ao PP, seis meses após Lira assumir a presidência da Câmara.
Em 2021, a então corregedora nacional de Justiça, Maria Thereza de Assis Moura, determinou que Rainey devolvesse quase R$ 10 milhões ao Funjuris, o Fundo Especial de Modernização do Poder Judiciário do Estado de Alagoas, por valores arrecadados que o cartório teria deixado de repassar ao fundo.
A carta enviada por Célio ao CNJ se baseou, em parte, em uma apresentação da Confia, em que a empresa afirmava que “em parceria com a DataPrev, construímos a maior e mais completa base de dados antifraude do Brasil, com mais de 245 milhões de CPFs, com a conferência de mais de 70 atributos de todos os brasileiros. A parceria resultou em uma integração de serviços que serão ofertados tanto para o setor público quanto para o mercado privado, na sociedade Confia Holding – Dataprev””
Procurada, a Confia disse que “o Power Point, elaborado em 2022, era preliminar e de uso interno da Confia, continha imprecisões e dubiedades que foram posteriormente corrigidos. Recentemente, foi indevida e maliciosamente divulgado por um ente de mercado, presumidamente para causar danos concorrenciais à Confia”.
O autor da carta ao CNJ, Célio, é também presidente da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia em Identificação Digital (Abrid).
A Arpen também repudiou a apresentação em power point, afirmando só ter tomado conhecimento do documento muito tempo depois, e que “estava construído com uma linguagem incorreta, termos inapropriados e fora do contexto jurídico correto. A entidade acionou a Confia sobre as incorreções do documento e exigiu sua pronta exclusão, advertindo a empresa sobre o erro cometido.”
O site da Confia foi retirado do ar no final do ano passado. Muitas das informações da apresentação de power point estavam disponíveis no site até agosto de 2023, conforme mostra o arquivo Wayback Machine.
OUTRO LADO
A Confia, por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou que “nem a Polícia Federal nem quaisquer autoridades envolvidas na operação investigativa citada jamais fizeram citações, intimações ou notificações relativas Candelot” e o processo foi “suspenso e arquivado por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Portanto, nem mesmo o alvo da operação foi responsabilizado por qualquer fato”.
A empresa afirma também que a Arpen celebra seus próprios contratos e convênios (respaldados pela legislação e homologações junto ao CNJ) e conta com a Gene para atender as respectivas necessidades tecnológicas.
Segundo a assessoria do IRTDPJ, Rainey Marinho é, “há muitos anos, uma pessoa proeminente no ambiente oficial de seu estado de origem, fato que o leva a ter reiteradas interfaces com a maior parte das autoridades alagoanas. Como presidente de duas entidades de classe dos cartorários (Anoreg-AL e IRTDPJBrasil), faz parte de suas atribuições realizar agendas e representar os interesses dos cartórios junto às principais pessoas públicas do estado e também em nível federal, incluindo não apenas o atual presidente da Câmara dos Deputados (Arthur Lira) mas também inúmeras personalidades dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. O fato de postar nas redes sociais fotografias das agendas com autoridades se justifica como prestação de contas e demonstração de prestígio das entidades que preside.”
Em relação à decisão da então corregedora Maria Thereza Moura, a assessoria do IRTDPJ disse que ela “se deu em um procedimento em que foi desrespeitado o contraditório e ampla defesa, fato expressamente reconhecido em decisão favorável ao Sr. Rainey no Supremo Tribunal Federal (STF).Após o reconhecimento do direito de defesa do Sr. Rainey, foram apresentadas suas alegações ao atual Corregedor, ainda pendentes de análise”.
A assessoria também disse que “não houve qualquer enriquecimento ou percebimento de valores a mais pelo Sr. Rainey.”
Procurada, a DataPrev disse não ter nenhuma relação comercial com a Confia. Afirma que o convênio com a Arpen “prevê uma mudança no modelo de integração, conectando os dados e serviços de Registro Civil aos serviços de governo, de modo a inserir as atualizações feitas nos cartórios (nomes, óbitos, registros de nascimento, casamento) diretamente na Plataforma Social operada pela Dataprev. Isso permitirá que as atualizações nos dados de cada pessoa (identificada pela chave CPF) sejam feitas uma única vez e repercutidas para os demais entes de governo (bases de dados de programas e políticas públicas) com mais rapidez e consistência”.
PATRÍCIA CAMPOS MELLO / Folhapress