Com 6.000 desabrigados, universidade administra cidade provisória e recorre à polícia para separar facções

CANOAS, RS (FOLHAPRESS) – Ambos técnicos em enfermagem, Aline Noronha da Silva, 28 anos, e Jean Olivo Pedroso, 32 anos, estão noivos, mas a tragédia das enchentes os forçou a adiar um pouco mais o casamento. Perderam tudo na semana que passou –só a aliança dela se salvou.

Jean está hospedado na casa de familiares. Aline está com os avós e a cachorra no campus da Ulbra (Universidade Luterana do Brasil), em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, onde ambos residiam até as águas destruírem suas casas.

Ali foi instalado o maior abrigo entre tantos surgidos para mitigar a calamidade provocada pelas enchentes que desde a semana passada assolam o Rio Grande do Sul -e que por enquanto provocaram dezenas de mortes e deixaram mais de 200 mil desabrigados ou desalojados.

Em poucos dias, com o auxílio do poder público e de voluntários, a Ulbra, uma instituição privada, montou dentro do seu campus uma cidade de desvalidos maior do que muitos municípios brasileiros.

Espalhadas por cinco prédios, cerca de 6.000 pessoas habitam o complexo, quase 2% de toda a população de Canoas (347,6 mil habitantes), terceiro município mais populoso do estado e um dos mais devastados pelas cheias.

Na sexta-feira (3), a universidade começou a atender os atingidos. Eram entre 300 e 400 pessoas, lembra o reitor Thomas Heimann. “Só que ninguém imaginava o tamanho da tragédia. E aí, de sexta para sábado [4], já eram 1.500 a 2.000. No domingo, um heliponto foi improvisado no estádio, e helicópteros pousavam a todo instante. E hoje nós chegamos a quase 6.000 abrigados.”

Quase mil voluntários trabalham no local. Alguns desabrigados trouxeram até quatro bichos de estimação, e calcula-se que haja de 1.000 a 1.500 animais dentro do complexo.

Fake news pintam o megabrigo como um antro de caos e insegurança, o que abrigados e organizadores desmentem. Ocorre que a cidade provisória, naturalmente, emula problemas da cidade real.

Duas das maiores facções criminosas do Rio Grande do Sul -Manos e Bala na Cara- atuavam em bairros pobres de Canoas cujos desabrigados, eles inclusive, agora vivem no campus da Ulbra.

Nos dois primeiros dias, uma força-tarefa de segurança envolvendo Polícia Civil e Brigada Militar identificou o problema, e os grupos de cada facção tiveram de ser separados em prédios diferentes e monitorados.

“Estavam distantes 200 a 300 metros uns dos outros. Conforme o acampamento foi se formando, se não separássemos, eles iriam se matar lá dentro. No segundo dia já foi feita a separação”, afirma o inspetor da Polícia Civil Josué Jandrey. Integrantes da corporação e da PM mantêm bases dentro do complexo, inclusive com atividades e inteligência e policiamento permanente.

O reitor da Ulbra, Thomas Heimann, reconhece que integrantes de facções estão no abrigo, mas tem confiança de que não causarão problemas. “As facções não vão buscar se empoderar aqui dentro. Porque nós estamos abrindo as casas para eles. Eles sabem de que nós estamos nesse momento ao lado deles. Eles não podem criar uma guerra aqui dentro. Isso é muito ruim para eles. Então isso não é o que nos preocupa.”

Segundo Heimann, “obviamente foram resgatadas pessoas que fazem parte da cidade. Não se distingue, né? Temos que entender que boa parte das pessoas que aqui estão são pessoas do bem”. Classifica o abrigo como “o lugar mais seguro que nós temos hoje dentro da cidade”.

O reitor ressalta que a Ulbra desde o início trabalhou “em alinhamento com os órgãos públicos, os órgãos de segurança, em contatos com juízes, promotores, porque senão a coisa não funciona”.

As aulas da universidade estão interrompidas. O complexo foi se expandindo a cada dia na velocidade da urgência. Gradativamente, explica Heimann, surgiram um hospital de campanha (próximo ao hospital universitário), uma equipe de saúde, uma farmácia, um posto de atendimento psicossocial. Um andar inteiro para crianças autistas e idosos em situação especial. Um centro de acolhimento das crianças perdidas, gerido com o Conselho Tutelar.

“Isso tudo foi sendo criado à medida que as demandas vinham acontecendo.”

O diretor de esportes da Ulbra, Hans Kuchenbecker, acumulou o cargo de coordenador de crise. É, segundo Heimann, o prefeito da cidade temporária. “Eu sou o vice-prefeito”, brinca o reitor.

Kuchenbecker conta que foram constituídos comitês de administração de cada um dos prédios (quatro de aulas, um ginásio esportivo e um misto). “Daí criamos um grupo de voluntários, e em menos de 20 minutos nós tínhamos mil voluntários, e dentro desse grupo criamos pequenos subgrupos de coordenadores de prédios, para que a gente começasse a atender essas demandas.”

No complexo há um centro para doações de roupas, alimentos e água, mas todas as refeições (quatro por dia) são produzidas pela cozinha da Ulbra, com a ajuda dos voluntários.

Como a infraestrutura do lugar foi construída primordialmente para aulas temporárias, e não para hospedagem, os desafios são imensos. Hoje o maior deles tem sido a pequena quantidade de banheiros (e sobretudo chuveiros) em relação ao universo de abrigados, relata Adriano Chiarini, superintendente de Infraestrutura e Serviços da Ulbra. “Temos o complexo esportivo com 30 chuveiros, mas são 6.000 pessoas. Então, hoje a nossa maior necessidade está em ampliar essa questão.”

Não se sabe ainda quanto tempo a cidade provisória ficará em funcionamento, e ainda há demandas urgentes. Água é uma delas, diz Chiarini, que pede doações do líquido vital. “Estamos precisando também de voluntários médicos, que venham aqui trabalhar aqui nos prédios para atender as pessoas.”

A diarista Elisângela Lopes da Silva narra que no início houve alguns problemas, mas que, com o aumento do policiamento, as coisas melhoraram. “Sobre o tratamento e a comida, está tudo maravilhoso, ótimo. O que não esteve bom foram as brigas, uns caras tarados, né? Entrando no banheiro das mulheres. Isso é triste, mas a gente tá sendo bem tratado. E agora acho que a segurança está melhor.”

Hans Kuchenbecker, o coordenador de crise, observa que o efetivo de segurança inclui policiamento ostensivo e agentes à paisana dentro do complexo.

Os noivos Aline e Jean continuam driblando os infortúnios. Ele está trabalhando no hospital de campanha e todo dia vai até o ginásio em que ela dorme dar-lhe um beijo, e passam um tempinho juntos.

“Eu acho que o que mais importa é o amor, né? Eu vi muita solidariedade das pessoas. Muita união”, afirma Aline. “Aí eu disse para ele, agora a gente não tem nada, mas a gente tem amor, a gente corre atrás. E é isso, é isso que vai nos mover.”

FABIO VICTOR E CARLOS MACEDO / Folhapress

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