SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Foi lendo uma história infantil para seus filhos pequenos dormirem que Christian Petzold se deparou com a palavra “totenstill”, traduzida do alemão como “silêncio absoluto”.
“Mas silêncio é uma coisa que você pode ouvir, expliquei a eles. Você não ouve carros ou pessoas, mas pássaros e o vento. Já totenstill é o nada”, diz o cineasta alemão por videochamada.
Alguns anos depois, as crianças entenderam o real significado da palavra, durante férias familiares em uma região da Turquia que acabara de ser devastada por incêndios florestais. “Não havia som algum. Fiquei pensando na pergunta dos meus filhos, isso é totensill? que, no fundo, significa, temos um futuro?.”
O episódio serviu de inspiração para “Afire”, o novo filme de Christian Petzold, vencedor do prêmio da crítica no Festival de Berlim e, recentemente, na Mostra de Cinema de São Paulo.
O longa acompanha Leon (Thomas Schubert), um jovem escritor que viaja para a casa do amigo, localizada no litoral alemão, na esperança de terminar seu novo livro. Mas, se o artista esperava um retiro sereno para superar o bloqueio criativo, descobre na chegada que ambos vão dividir a casa com Nadja (Paula Beer), uma mulher independente, misteriosa, porém solar.
Diferente de Leon, Nadja se mostra preocupada com os incêndios que tomam a floresta nos arredores da área, estrategicamente usados por Petzold como plano de fundo da narrativa.
“O romantismo alemão me interessa muito”, diz o diretor que cita os escritores E. T. A. Hoff e Hugo von Hofmannsthal, e o pintor Caspar David Friedrich, para os quais a floresta e a costa do mar Báltico onde se passa “Afire”- eram fontes de inspiração. O mesmo vale para “Nosferatu”, clássico do cinema expressionista alemão de 1922, gravado em uma cidade litorânea. “Trata-se de um legado”, diz.
A guinada lírica do cineasta começou com “Undine”, de 2020, que adapta uma lenda da mitologia germânica para a vida de um casal na Berlim contemporânea. Segundo a lenda, Undine, ninfa do amor que vive nas águas, mata todo amante que a trai.
Antes do longa, Petzold ganhou o reconhecimento do circuito mundial com filmes de época que flertam com gêneros diversos desde melodrama até o horror e que esmiuçam, sem excessos dramáticos, a conturbada história da Alemanha.
É o caso do aclamado “Phoenix”, em que Nina Hoss interpreta Nelly, uma sobrevivente do holocausto que tem seu rosto desfigurado. Na busca pelo reconhecimento do marido, ela acaba por enfrentar questões de identidade. Ou “Barbara”, em que uma médica é expulsa de um hospital depois de tentar escapar para a Alemanha ocidental na década de 1980.
Estilo herdado, em parte, da formação de Petzold na escola de Berlim, junto de diretores como Angela Schanelec e Thomas Arslan, que começaram a fazer cinema logo após a queda do muro. Enquadramentos sóbrios, narrativas políticas e emoções implícitas, resultado de um contexto político austero, são algumas características do movimento que sucedeu o novo cinema alemão, encabeçado por figurões como Wim Wenders e Werner Herzog.
Ainda assim, Petzold insere elementos do melodrama em suas narrativas. “Ele estrategicamente coloca a emoção nos filmes como um sentimento que não tem espaço no cotidiano”, diz David Gomes Terao, pesquisador em cinema e especialista na cinematografia de Christian Petzold pela Unicamp.
Nas relações de desconfiança criadas entre os personagens, características do gênero, como diferenças de classe social e a impossibilidade de um amor, por exemplo, são como uma “válvula de escape”, diz Terao. No entanto, o diretor dispensa o drama do cinema clássico, retomado por cineastas como Pedro Almodóvar e Todd Haynes.
Apesar de ser figurinha carimbada no Festival de Berlim e de ser considerado pelo New York Times como o cineasta alemão mais importante da atualidade, o tapete da fama é solitário, desabafa. “Na Alemanha, nós tivemos que lutar muito pelo cinema depois da guerra, porque o nazismo destruiu tudo com sua propaganda”, diz.
“Quando você olha para o circuito internacional, os alemães ainda não são tão importantes, na minha opinião. É mais excitante assistir aos novos filmes argentinos ou romenos”, diz, entre risos tímidos.
Admirador de cineastas alemães como Fritz Lang e F. W. Murnau e se considerar “um cara de esquerda”, Petzold considera os filmes americanos como “os mais importantes para a história do cinema”. “Acho que é porque os americanos precisam do cinema para ter história”, diz.
Não por acaso, “Deus Sabe Quanto Amei” e “Num dia Claro de Verão”, de Vincente Minnelli, serviram de material para os atores de “Afire” que, diferente dos outros filmes de Petzold, traz o elemento da comédia nos diálogos constrangedores e nas atitudes de Leon, ridiculamente autocentrado.
“Assim como Éric Rohmer [cineasta francês], os diálogos dos filmes americanos são como uma briga e querem passar algo ao espectador”, algo que o cinema perdeu hoje em dia, segundo o diretor, com filmes que “querem educar”. Petzold cita Glauber Rocha como um diretor que sabia usar os diálogos de forma poderosa em cena.
Leon, que parece quase um escritor do século 19 preso na contemporaneidade, é um cretino para Petzold. “No cinema, muitas vezes, é mais interessante que o protagonista seja desesperado, triste ou um imbecil. Como em Taxi Driver, por exemplo”, diz.
Mas o filme é o retrato do personagem, e não uma narrativa sobre seu ponto de vista. “Eu não filmaria Paula Beer pelada, por exemplo. [Sua personagem] É a única independente, que trabalha, cozinha. Se ela sai de cena, você sente que sua vida continua fora do campo de visão da câmera.”
Petzold, aliás, diz que ele trabalha para Paula Beer que estreia o terceiro filme do diretor e não o contrário. Beer, que começou a carreira como dançarina. “Ela não é ambiciosa com a câmera, você precisa observá-la.”
“Afire” não é fantasioso como “Undine”, ainda que tenha uma faísca de realismo fantástico acendida pela queimada florestal que, com cores vibrantes, se aproxima pouco a pouco dos personagens, quase como uma força sobrenatural.
O longa também não é político como “Phoenix”, mas não deixa de mirar uma classe específica. “O filme não é político, mas tem esse componente em sua narrativa”, diz, dando como exemplo o retrato de indivíduos abastados que passam férias na costa da Alemanha oriental e “não tem preocupações com dinheiro”.
Se os filmes para a televisão, que Petzold gravou para circulação interna em parte de sua carreira, são feitos para confortar as pessoas, “como uma cozinha ou uma fogueira”, o cinema precisa confrontar o público.
“Para mim, a melhor sensação é quando eu saio do cinema, estou andando para casa e consigo ver o mundo por outra perspectiva. Meu ponto de vista foi provocado. É isso que eu amo no cinema.”
AFIRE
– Onde Nos cinemas
– Classificação 12 anos
– Elenco Thomas Schubert, Paula Beer, Langston Uibel
– Direção Christian Petzold
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress