SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma vitória do republicano Donald Trump na eleição de novembro seria a coroação do movimento tecnolibertário neorreacionário, que faz parte da chamada nova direita nos Estados Unidos.
O senador de Ohio J.D. Vance, vice na chapa de Trump, foi apadrinhado por Peter Thiel, um dos principais bilionários do Vale do Silício. Thiel e outros barões do “mundo tech”, incluindo os investidores Marc Andreessen (fundador da empresa Netscape), Ben Horowitz e David Sacks, são seguidores e financiam Curtis Yarvin, um dos expoentes do movimento neorreacionário.
Assim como seus mecenas, Vance já endossou várias ideias de Yarvin. O neorreacionarismo (abreviado como NRx) quer substituir a democracia por um regime quase feudal no qual o governante agiria como um rei ou como um CEO com poderes absolutos frente aos funcionários públicos. Também colocaria a tecnologia no centro de tudo.
Os neorreacionários se opõem aos republicanos tradicionais e sua estratégia gradual de injetar conservadorismo no governo.
Yarvin, um ex-programador e blogueiro de 51 anos, de cabelos compridos e óculos de nerd, combate o que chama de “A Catedral”. Seria uma elite formada por burocratas do governo, universidades e grande mídia que estaria pregando valores progressistas para a população.
Ele popularizou o conceito de “red pill” (em referência ao filme Matrix) com o significado de abrir os olhos para a realidade que os progressistas estariam tentando esconder.
“Yarvin é um tipo estranho de monarquista, que quer ter um governo formado por CEOs-reis visionários, figuras heroicas que entendem o mundo, e com um substrato de pessoas comuns que seriam súditos conservadores”, disse Henry Farrell, professor de relações internacionais na Universidade Johns Hopkins que acaba de publicar um artigo acadêmico sobre o tema.
O neorreacionarismo começou como um movimento marginal na internet, parte da chamada alt-right (abreviação de direita alternativa). Neste nicho, Yarvin ganhou destaque nos anos 2010 com seu blog, em que usava o pseudônimo Mencius Moldbug.
O ex-programador só ganhou o status de “profeta Yarvin” após ser abraçado por Peter Thiel, seu amigo e que o ajudou a financiar uma startup. Foi a fusão do tecnolibertarianismo com o neorreacionarismo.
Já em 2012, o blogueiro cunhou a abreviação Rage (aposente todos os funcionários do governo, em português) como primeiro passo para derrubar o governo nos EUA.
É exatamente o que propõe o Projeto 2025, o plano de governo elaborado por nomes e organizações próximas de Trump, do qual ele tenta se distanciar.
E o próprio Vance, o vice na chapa de Trump, encampou totalmente a ideia de Yarvin em uma entrevista em 2021 ao YouTuber de direita Jack Murphy.
“Tem esse cara, o Curtis Yarvin, que vem escrevendo sobre isso”, disse Vance ao propor o que definiu como um programa de Desbaathificação (demissão em massa de membros do partido de Saddam Hussein que ocupavam postos no governo, após a invasão do Iraque), ou uma deswokização (do termo “woke” usado pela direita para se referir de forma pejorativa a posições de extrema esquerda).
“Eu acho que Trump vai se candidatar de novo em 2024 e é isso que ele deveria fazer: demitir todos os burocratas do governo, todos os servidores públicos, e substituir por gente nossa”, disse Vance em 2021, ecoando Yarvin. Em outras declarações, o candidato a vice aderiu a conceitos de Yarvin relacionados ao red pill e à catedral.
Thiel, o padrinho em comum de Vance e Yarvin, cruzou o caminho do republicano em 2011, quando o senador estudava direito em Yale.
Após se formar, Vance trabalhou no fundo de capital de risco de Thiel e saiu de lá para abrir seu próprio fundo, com apoio do bilionário. Os dois batizam suas empresas com nomes em referência a lugares e personagens da trilogia “Senhor dos Anéis”.
Thiel, um dos primeiros investidores do Facebook, foi o maior doador da campanha de Vance ao Senado, despejando US$ 15 milhões em 2022.
Junto com Sacks, Elon Musk, outro integrante da chamada máfia do PayPal (dos fundadores da empresa de pagamentos online), Andreessen e Horowitz, Thiel declarou apoio a Trump e todos se tornaram grandes financiadores de sua campanha.
Eles se opõem às tentativas de regulação de inteligência artificial, criptomoedas e redes sociais do governo Biden, e das medidas antitruste contra as big tech. Eles pregam o evangelho da nova direita em sua cruzada para empoderar o setor privado e combater o “deep state”, termo que se refere a supostas elites da burocracia estatal que defendem interesses próprios.
“É como se eles construíssem um senso de identidade em torno do modelo de negócios de suas empresas e transformassem isso em uma filosofia, tomando emprestadas ideias de pensadores que são compatíveis com sua ideologia, como Curtis Yarvin”, disse Farrell. Segundo ele, esses empresários se veem como heróis, como motores do progresso da humanidade, que estão sendo atrapalhados pelos burocratas do governo.
Andreessen, cuja empresa administra US$ 42 bilhões em recursos, lançou até um “Manifesto Tecno-otimista” no ano passado, celebrando a “máquina do tecnocapital” e sua capacidade de trazer tudo o que há de bom no mundo.
“Segundo essa visão, os empresários da tecnologia não são apenas líderes de seus negócios, mas também protetores da ordem social, sem as amarras daquilo que Andreessen chama de ‘inimigos’: responsabilidade social, confiança e segurança (nas redes sociais), e ética na tecnologia”, escreveu a estrategista digital Elizabeth Spiers no jornal The New York Times.
Thiel chegou a dizer, em um seminário no Instituto Cato, não acreditar mais que “democracia e liberdade sejam compatíveis”.
Trump e Vance abraçaram a apologia ao autoritarismo da nova direita e apostam em uma centralização inédita de poder.
PATRÍCIA CAMPOS MELLO / Folhapress