BEIRUTE, LÍBANO (FOLHAPRESS) – Quando atingiu 26 mil pés (7.924 metros) ao se aproximar do aeroporto de Beirute no domingo (13), o KC30 da FAB (Força Aérea Brasileira) perdeu o GPS. Desde que o conflito na Faixa de Gaza e no Líbano se acirrou, o Exército de Israel começou a bloquear os sinais de localização via satélite para barrar possíveis mísseis teleguiados da milícia Hezbollah.
O copiloto, o capitão Lucas Braga, e o piloto, o major Willian Matos, passaram a voar usando apenas instruções da torre de controle e outras informações alternativas. Preparando-se para pousar em um aeroporto onde frequentemente há bombardeios nas proximidades, a equipe da FAB já havia desligado todas as luzes para “camuflar” a aeronave. E traziam bastante combustível extra, para o caso de precisarem desviar de rota e pousar em outro local, como a Turquia ou a Itália.
“Precisamos ter atenção redobrada para detectar uma situação de insegurança, como mísseis ou bombas. (…) É preciso pensar em como mitigar, em decolar e sair pelo mar o mais rápido possível, caso necessário”, diz Matos.
Em voos anteriores, os pilotos viram e ouviram explosões a cerca de 500 metros do aeroporto, que fica a cerca de dois quilômetros de Dahiyeh. O subúrbio ao sul de Beirute é o bastião do Hezbollah e vem sendo bombardeado sistematicamente por Israel.
A FAB vem buscar uma encomenda preciosa centenas de brasileiros que vivem no Líbano e estão fugindo do país por causa de uma guerra que matou 1.600 pessoas em solo libanês só nas últimas três semanas. Entre os mortos nos bombardeios estão dois adolescentes brasileiros.
A operação Cedro do Líbano havia resgatado 1.105 brasileiros até esta segunda-feira (14), quando chegou ao Brasil o quinto voo de repatriação, com 220 pessoas. A Folha acompanhou a operação no avião da FAB.
Inicialmente, o Itamaraty anunciou que cerca de 3.000 brasileiros haviam se registrado para tentar uma vaga nos voos, mas o número atual pode chegar ao dobro disso. Com essas cifras, a Cedro do Líbano encaminha-se para ser a maior operação de resgate feita pelo governo brasileiro na história do país.
No ano passado, a FAB repatriou 1.555 brasileiros de Israel e Gaza em 13 voos, começando a operação em 10 de outubro, três dias após os atentados terroristas do Hamas que deixaram mais de 1.200 pessoas mortas. Antes disso, a maior repatriação havia sido em 2006, na última guerra de Israel no Líbano foram 1.800 brasileiros transportados pela FAB.
Desta vez, a procura é maior. Antes do conflito, havia cerca de 22 mil brasileiros morando no Líbano, mas com os combates, estima-se que esse contingente tenha caído para cerca de 12 mil.
Muitos saíram do Líbano usando meios próprios, mas grande parte dos brasileiros não tem recursos uma passagem só de ida para o Brasil, pela única companhia aérea que continua operando, a libanesa Middle East Airlines, chega a sair por R$ 15 mil na classe econômica e há poucos lugares. Como alternativa, a viagem de barco do Líbano para o Chipre varia de US$ 1.000 a US$ 1.800, mais a passagem aérea até o Brasil, cerca de US$ 1.500 (R$ 16.500).
Além de pousar um avião na capital do país em guerra, a equipe de resgate tem outros desafios.
A FAB viaja com médicos, enfermeiros e psicólogos, além dos pilotos, que se revezam de três em três horas na cabine, os comissários e os mecânicos.
A capitão Kelly Gomes, médica do Esquadrão Corsário, sempre faz um briefing para sua equipe sobre os casos mais delicados que irão encontrar. Entre os passageiros que embarcariam no domingo, havia um recém-nascido, um idoso cadeirante, uma pessoa com enfisema pulmonar que necessita de oxigênio, um passageiro com traumatismo e uma senhora de mais de 90 anos com demência.
Muitos resgatados estão sob intenso estresse. Grande parte passa mal no voo, com crises de ansiedade, ataques de pânico e vômitos, e algumas crianças traumatizadas choram o tempo todo. Se necessário, os médicos conseguem montar um leito de UTI em meia hora, retirando entre seis e nove assentos e adaptando o avião.
Gomes, que é médica intensivista e trabalhou 11 anos em hospitais militares no Rio, tinha um sonho de entrar no Esquadrão Corsário. O esquadrão, liderado pelo tenente-coronel Marcos Olivieri, faz missões humanitárias.
A capitão Gomes participou dos resgates de brasileiros em Gaza e Tel Aviv e na logística do combate à Covid-19 ”outra guerra”, segundo ela. “Toda vez que saio para uma missão, explico para os meus filhos: ‘Mamãezinha vai ajudar umas pessoas a voltarem para casa'”, diz Gomes, que tem uma filha de 7 anos e outro de 5. Todos da equipe estão longe de casa desde 2 de outubro.
Em solo, a angústia também é grande. As famílias dos oficiais acompanham o voo pelo aplicativo Flight Radar por lá, o código do avião é FAB 2901.
Até chegar ao transporte dos brasileiros, o resgate exige um trabalho diplomático e consular intenso. Antes da operação, o embaixador do Brasil em Beirute, Tarcísio Costa, fez contatos com Nabih Berry, presidente do Parlamento do Líbano, com o comandante das Forças Armadas, Joseph Aoun, e com o primeiro-ministro Najib Mikati para garantir a segurança da operação.
A seleção dos passageiros é outra tarefa trabalhosa. No primeiro voo, embarcaram os brasileiros que não tinham residência no país, e a maior parte era formada por turistas. A partir daí, a seleção segue as prioridades por lei idosos, pessoas com deficiência ou alguma doença, menores de idade. Além disso, segue-se o princípio de não dividir famílias.
A brasileira Nawali Orra foi uma das selecionadas. Ela morava há 8 anos no Líbano, no Vale do Bekaa, alvo de inúmeros ataques aéreos israelenses. Nawali, o marido libanês e os cinco filhos deixaram tudo para trás. Fecharam a porta de casa e embarcaram no voo de domingo (13), cada um com apenas uma mala pequena. Chegaram ao Brasil na segunda, aliviados e assustados, para recomeçar suas vidas.
A embaixada ganhou reforço de três diplomatas e uma assistente de chancelaria para processar os pedidos de repatriação. Os funcionários tiveram que produzir cem documentos de viagem passaportes para brasileiros, autorizações de viagem para brasileiros e passaportes temporários para libaneses parentes de primeiro grau dos brasileiros, para poderem entrar no Brasil.
Os diplomatas estão trabalhando das 8h às 22h desde 3 de outubro. Estão exaustos. Mas, quando chegam em casa, é difícil cair no sono ao som de bombardeios.
PATRÍCIA CAMPOS MELLO / Folhapress