VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Não é à toa que o Festival de Veneza escolheu “O Assassino”, de David Fincher, para ser exibido um dia antes de “Hit Man”, de Richard Linklater. São dois filmes que falam de homens que ganham a vida matando outras pessoas por encomenda, mas dizer que os dois longas não poderiam ser mais diferentes é quase um eufemismo.
O de Fincher, mais sisudo, meticuloso e que talvez se leve um pouquinho mais a sério do que deveria, veio a Veneza para disputar o Leão de Ouro. Já o de Linklater, uma comédia despudorada, sem altas pretensões e autogalhofeira, está no Lido fora da competição. Os lugares dos dois filmes fala um bocado, também, sobre escolhas curatoriais das grandes mostras de cinema atuais.
“O Assassino” é a história de um homicida profissional que apresenta ao espectador sua visão sobre seu próprio ofício. Michael Fassbender dá vida ao protagonista, Christian, que começa a história em uma sala de escritórios vazia, com uma arma apontada para a janela do apartamento em frente, onde um velhote milionário em algum momento surgirá acompanhado de uma garota de programa.
É esse senhor que o sicário deve assassinar, e enquanto ele espera a melhor oportunidade para apertar o gatilho, repassa ao público frases que comentam seu estilo de vida e alguns pensamentos sobre o comportamento humano. Em seu repertório, há espaço para pensatas filosóficas, como “ceticismo não deve ser confundido com cinismo”, a referências mais mundanas, tipo “como diria Popeye: sou o que sou”.
Quando o velho finalmente aparece, Christian dispara e erra o alvo. Começa ali uma fuga desenfreada para não ser pego pelos capangas do homem que planejava matar, mas não apenas isso.
O assassino fracassado tem algo mais a fazer. Precisa encontrar o cliente que contratou seu serviço e ir atrás dele também, sob o risco de ele próprio ser a próxima vítima, tanto para pagar por seu erro de pontaria quanto por saber demais.
O filme segue, assim, a saga desse anti-herói em busca de eliminar seus adversários, um por um, para simplesmente se manter vivo.
Fincher está em casa: o tema do crime é uma das tônicas de sua carreira, e ele tem uma perícia inquestionável para injetar adrenalina nas cenas que demandam suspense e habilidade com armas. O filme tem inspiração na graphic novel de mesmo nome de Alexis Nolent e Luc Jacamon, mas o longa se impõe como um produto mais sofisticado.
É um tipo de cinema que explora a própria linguagem com altíssimo rendimento em termos de excitação do público. Sua direção é tecnicamente impecável, e o filme tem um aspecto desafetado que amplia muito coerentemente a ideia de frieza que emana do protagonista.
É uma obra quase tão precisa quanto o perfeccionismo de Christian e que, assim como ele, também erra a pontaria em alguns aspectos. O deslize mais notável diz respeito ao conteúdo. Ao mostrar a mente de um assassino caça-níquel, pode até ser que Fincher esteja nos apresentando a um mundo muito peculiar e específico, que em nada é desinteressante.
O problema é que o filme não parece ter muita vontade de promover alguma reflexão sobre o que mostra. É oco, apesar de embalado em um extraordinariamente vistoso embrulho de cinema de gênero -é um thriller de primeiríssima categoria.
A brasileira Sophie Charlotte aparece no elenco, mas em duas cenas muito pequenas -e com o rosto todo maquiado, já que sua personagem teve a face violentada, o que praticamente impede que a reconheçamos.
Já próximo ao fim, a sempre notável Tilda Swinton tem uma breve, porém fulgurante participação -e quando ela e Fassbender se encontram, o filme atinge um de seus ápices.
“Hit Man”, por outro lado, é uma história meio aparvalhada, inspirada na vida de Gary Johnson, um professor especialista em psicologia que presta serviços para a polícia de Nova Orleans, ajudando-os a desvendar a mente de criminosos.
Mas um dia, o policial que habitualmente finge ser assassino de aluguel para desmascarar pessoas que contratariam seu serviço é afastado do cargo temporariamente, e sobra para Gary desempenhar o papel de isca para prender criminosos.
No início, ele fica com medo, mas assim que começa a se passar por sicário, percebe que leva muito jeito para a coisa. Em pouco tempo, ajuda a polícia a prender várias pessoas que pensavam em assassinar desafetos, ganhando a chance de assumir o cargo definitivamente.
Tudo muda depois que Gary se apaixona por uma mulher que quer contratar um assassino para se livrar do marido abusivo. Ele faz todo tipo de contorcionismo para que a polícia não descubra que está saindo com ela, e para que sua amada não saiba que, na verdade, ele é um tira disfarçado de sicário.
Essa premissa é a base para uma comédia deliciosamente tola, mas com um roteiro muito mais criativo e estruturado do que pode dar a transparecer. Linklater assina o texto com Glen Powell, que é também quem dá vida ao assassino fajuto do filme.
O ator tem uma atuação vivaz e autoirônica que garante que o longa funcione mesmo nos instantes menos inspirados. Essa pode ser a grande chance de Powell, ainda relativamente pouco conhecido, de se tornar um astro de primeiro time em Hollywood.
São dois bons filmes, com qualidades e problemas completamente distintos. Mas são estranhamente complementares: o pragmatismo certinho de um e o carisma autonegligente do outro formam um duo bastante curioso.
BRUNO GHETTI / Folhapress