WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – A guerra na Faixa de Gaza atingiu um marco trágico nesta terça-feira (22) com o anúncio de autoridades do território de que bombardeios israelenses já feriram mais de 100 mil palestinos desde 7 de outubro de 2023. O número é maior do que a população de municípios paulistas como Ubatuba (92,9 mil) e São João da Boa Vista (92,5 mil).
Com quase 43 mil mortos em Gaza, os feridos são vistos como uma preocupação secundária no mundo. Eles representam, porém, uma crise humanitária imediata: após um ano de guerra, o território não tem como cuidar dos inúmeros traumas e amputações.
Israel afirma que seus ataques ao território palestino são uma resposta ao atentado da facção palestina Hamas, que matou cerca de 1.200 pessoas e sequestrou outras 251 em kibutzim no entorno de Gaza. Boa parte da comunidade internacional, no entanto, afirma que essa resposta tem sido desproporcional.
No último ano, os bombardeios devastaram a infraestrutura médica de Gaza, que era de antemão um local empobrecido e desabastecido. O Ministério da Saúde do território, autoridade controlada pelo Hamas, afirma que 23 dos seus 38 hospitais deixaram de funcionar. Os 15 restantes operam de modo parcial.
Israel já levantou dúvidas, no passado, sobre a veracidade das informações que vêm do ministério palestino. Esses números, no entanto, são chancelados e utilizados por organizações humanitárias internacionais, e especialistas sugerem que o número de vítimas é maior do que o relatado.
Isso significa que médicos não conseguem tratar nem mesmo ferimentos que, em situações normais, teriam soluções simples. “Todos que estão sendo feridos estão morrendo”, diz o cirurgião Ghassan Abu-Sittah. “Metade das amputações são de membros que poderiam ter sido salvos.”
Abu-Sittah afirma que, pela natureza dos ferimentos, os médicos precisam de equipamentos e remédios que não estão disponíveis. Não são como feridas de tiros, diz, que são mais pontuais. A maior parte dos casos são de múltiplos traumas. “Quando uma bomba explode, ela arranca os membros da pessoa, desfigura seu rosto, queima sua pele. Quando um prédio desmorona, esmaga seus ossos. É difícil de tratar.”
Segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 25% dos ferimentos em Gaza provocaram efeitos de longo prazo e precisarão de reabilitação. Do total de feridos, por exemplo, 3% tiveram membros amputados e 2% tiveram ferimentos graves na cabeça, no pescoço ou na coluna vertebral.
Abu-Sittah é um cirurgião britânico-palestino. Viajou a Gaza nos primeiros dias do conflito para prestar assistência. Ficou conhecido, em especial, pelas declarações que deu a jornalistas em outubro de 2023, em que aparece cercado dos corpos de vítimas do ataque ao hospital al-Ahli.
A explosão do al-Ahli foi um dos momentos mais dramáticos daquelas semanas iniciais e um dos mais contestados. As autoridades palestinas dizem que um ataque israelense deixou cerca de 500 mortos naquele hospital. Já Israel afirma que o responsável foi um foguete do próprio Hamas.
Abu-Sittah, que estava dentro do al-Ahli, diz que não tem dúvidas da culpa de Israel. Tel Aviv vinha ameaçando os hospitais desde o início dos confrontos, transmitindo ordens de evacuação para as equipes.
Independente de quem fez o disparo, Abu-Sittah teve de cuidar das vítimas. Diz que viu “crianças e mulheres com membros amputados e pedaços de corpos” espalhados pelo pátio do hospital. “Eu trabalhei como cirurgião em diversos locais de guerra, mas nunca vi nada assim.”
Abu-Sittah é bastante crítico àqueles que duvidaram, naquele momento, da autoria israelense dos disparos. Isso inclui a organização humanitária Human Rights Watch, com base nos Estados Unidos. Esses grupos, afirma, deram assim chancela para que Israel continuasse a perpetrar o que ele descreve como um genocídio dos palestinos. “Israel quis testar a opinião pública com seu ataque ao al-Ahli, e a opinião pública falhou.”
Houve, desde então, uma série de outros ataques a hospitais em Gaza, atribuídos com mais ou menos certeza a Israel. Para Abu-Sittah, esses bombardeios têm como objetivo “tornar Gaza inabitável”. Em 10 de outubro deste ano, uma comissão independente da ONU acusou Tel Aviv de uma política deliberada de ataques à infraestrutura médica de Gaza.
Israel, por sua vez, culpa o Hamas. Diz que a milícia construiu túneis debaixo de hospitais e que usa esses locais para conduzir suas operações terroristas, uma acusação repetida pelos EUA. Os palestinos negam.
Abu-Sittah deixou Gaza e está, agora, no Líbano. Diz que, após o início dos bombardeios israelenses a Beirute, decidiu que seu trabalho era necessário ali. Conta que, desde a chegada, notou a semelhança entre os locais. “São os mesmos tipos de ferimentos: pessoas retiradas de debaixo de escombros”, afirma. “A única coisa que muda é o tamanho do país.”
DIOGO BERCITO / Folhapress