Comissão de Anistia julga casos inéditos de reparação por violência contra povos indígenas

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Após os 60 anos do golpe militar, com atos abafados pelo governo Lula (PT), a Comissão de Anistia julga dois inéditos pedidos de perdão coletivo para atos cometidos contra povos indígenas.

Está na pauta desta terça-feira (2) do colegiado a anistia pela violência cometida contra os povos guarani-kaiowá e krenak. A Comissão Nacional da Verdade estima que 8.350 indígenas foram mortos no período de 1946 a 1988.

Os dois casos envolvem povos expulsos de seus territórios e foram indeferidos pela então ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, durante o governo Jair Bolsonaro (PL).

Agora, serão reavaliados. O pedido de anistia é um instrumento de reparação e preservação da memória e da verdade do que aconteceu no regime autoritário. Por meio dele, o Estado pede perdão às vítimas dos crimes cometidos pela ditadura militar.

Em 2023, o regimento da Comissão de Anistia –colegiado que analisa esses pedidos– passou a prever explicitamente as reparações coletivas. Ou seja, não a um ou outro perseguido político individualmente, mas a grupos. Este será o primeiro julgamento de perdão a povos indígenas.

Guyraroká

A expulsão sistemática dos guarani-kaiowá do território Guyraroká é anterior à ditadura militar e começa na Era Vargas.

A terra chegou a ser delimitada e declarada pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), mas a demarcação acabou barrada no STF (Supremo Tribunal Federal) em 2014.

No ano seguinte, o procurador Marco Antonio Delfino de Almeida, do MPF (Ministério Público Federal), entrou com o pedido de perdão na Comissão de Anistia –o processo é relatado por Maira Pankararu, única indígena a compor o colegiado.

O documento mostra, baseado em estudos da Funai e relatos, como os guarani-kayowá de Guyraroká, a partir de 1940, foram alvo da política brasileira de remoção de indígenas de áreas de interesse do agronegócio –o que se intensifica a partir da década de 1970, na ditadura, com o Plano de Integração Nacional e a soja.

Os indígenas eram “expulsos” dos locais onde habitavam e “confinados” em reservas florestais delimitadas pelo governo federal. O local original, então, era passado a fazendeiros.

O processo começa ainda sob mando do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), mas continua após a criação da Funai.

Os guaranis-kaiowá relatam casas queimadas, parentes agredidos e tiros durante as remoções.

O documento diz que SPI e Funai, “aliando-se aos interesses dos fazendeiros”, adotaram uma política de “deslocar para o interior das reservas a população guarani dispersa por um território muito mais amplo, ocupado segundo sua forma tradicional de residência”.

A expulsão, segue o texto, trouxe a fome, a miséria e doenças, e “eliminou um contingente significativo da população que anteriormente ocupava Guyraroká”.

Hoje, os guarani lutam pela retomada do território e vivem em áreas não protegidas, como nas beiras de rodovias, e são alvo de ataques –em 2016, o MPF denunciou uma milícia armada que atuaria em prol do latifúndio contra os guarani-kaiowá.

Gilmar Mendes é um dos defensores da tese de que haja um marco temporal, sujeito a condicionantes ambientais.

O primeiro voto a favor de barrar a demarcação de Guyraroká no STF foi dele, em 2014, que citou o precedente de Raposa Serra do Sol e acabou seguido pela maioria.

“A data da promulgação da Constituição Federal (5.10.1988) é referencial insubstituível do marco temporal para verificação da existência da comunidade indígena”, diz o acórdão. “Há mais de 70 anos, não existe comunidade indígena e, portanto, posse indígena na área contestada.”

O procurador Marco Delfino acredita que a anistia poderia mudar os rumos da demarcação.

“A partir do momento que a comissão, o Estado, pede desculpas pela remoção, reconhece o que ocorreu e se contrapõe a argumentação do ministro Gilmar Mendes, entendo que o fato pode provocar alterações de posicionamento”, diz.

Os guarani-kaiowá são atualmente um dos povos que mais sofre violência, sobretudo em Mato Grosso do Sul, com foco na região de Dourados, onde fica o território Guyraroká.

Em 2023, por exemplo, a líder religiosa Sebastiana Galton, 92, foi encontrada morta e carbonizada junto ao marido, Rufino Velasque, 55, dentro da própria casa. O estado é o segundo com maior índice de suicídio entre indígenas no Brasil –atrás apenas do Amazonas.

Krenak

O pedido de anistia feito em 2015 pelo procurador Edmundo Antonio Dias Netto Júnior, procurador do MPF, fala em etnocídio.

Um mês após o Ato Institucional nº 5, foi inaugurado o Reformatório Krenak –fruto de um convênio da Funai que delegou a assistência indígena à Polícia Militar de Minas Gerais–, cujo objetivo era “recuperar” indígenas subversivos.

Há relatos de trabalho forçado, maus-tratos, tortura e desaparecimento.

Indígenas, segundo o MPF, eram “obrigados a trabalhar pela manhã, almoçavam, e voltavam a trabalhar até à noite”; “batiam nos presos quando eles conversavam na língua indígena”.

A própria Funai admitiu, em documento do período da ditadura militar, que era um “regime da fome e da pancada”.

Segundo o pedido, a violência foi tamanha que existia quem acreditasse que a palavra krenak não denominava um povo, “mas uma cadeia”.

O local recebeu quase cem indígenas de todas as regiões do país, mas a violência atingiu todos os krenak, não restrita ao reformatório.

“Os indígenas não confinados, assim como os presos, receberam tratamento desumano, análogo à escravidão, foram torturados, havendo menção também ao desaparecimento de pessoas e a estupros”, diz uma ação civil pública que trata do caso.

Quem engravidasse era castigada e a criança, proibida de ter nomes indígena –ou até batizada com nome de um militar. Ritos e danças eram proibidos.

Tudo acontecia sob comando do major Manoel dos Santos Pinheiro, o Capitão Pinheiro, morto em 2023 sem condenação criminal e citado em relatos de estupro.

Ele foi responsável pela criação da Guarda Rural Indígena e determinou, em 1972, o deslocamento forçado dos krenak da terra onde viviam para uma fazenda, a cerca de 350 km de distância.

Indígenas chamam o episódio de “exílio” e dizem que eles foram levados como animais, alguns algemados, agredidos e até em pau de arara.

O reformatório também foi transferido –junto com as práticas de violência– e a terra ancestral krenak foi loteada pelo estado de Minas, em prol da “nova colonização”.

Em 1993, o STF anulou parte dos títulos e o território foi homologado em 2001 –os indígenas ainda reivindicam uma área maior do que a concedida pela Funai.

JOÃO GABRIEL / Folhapress

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