Como a debandada de estrelas da Globo mudou a cara da televisão brasileira

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A televisão está de cara nova. Enquanto Globo, Record e SBT demitem ou abandonam os contratos de exclusividade com seus artistas mais experientes, novatos disputam espaço com influenciadores, num contexto de fragmentação do mercado de trabalho, agora constituído não só pelos canais tradicionais, mas também por diferentes plataformas de streaming.

O novo rosto da televisão pode causar estranhamento à população brasileira, que, por meio século, viu seus dilemas e suas aspirações retratadas por figuras como Antonio Fagundes, Tony Ramos, Marieta Severo e Gloria Pires. Pela primeira vez em décadas sem emprego fixo, eles podem ser vistos no streaming ou encontrados nos teatros.

A mudança paradigmática na organização da indústria é mais perceptível na Globo, a maior do país. Agora no ar, a novela “Família É Tudo” tem, em seu elenco, Rafa Kalimann, que se descobriu atriz após ser eleita vice-campeã do Big Brother Brasil 2020. Numa cena que viralizou nas redes como piada, a intérprete de Jéssica esbravejou e fez carão.

Ela não foi a única. Há dois anos, a influenciadora Jade Picon se aproveitou do burburinho que a rondou após o BBB para fisgar um dos papéis mais importantes no folhetim “Travessia”, no horário nobre do canal.

A Globo ainda esvaziou o seu panteão de autores consagrados, demitindo nomes centrais de seu time, como o autor Aguinaldo Silva e Silvio de Abreu. Eles se somam a figuras históricas como Manoel Carlos e Benedito Ruy Barbosa, que se aposentaram, e Gilberto Braga, morto há cerca de três anos.

Assim, a emissora preencheu as novelas com artistas até então desconhecidos, que têm dificuldade de se firmar como ídolos. Para Aguinaldo Silva, são evidentes os prejuízos artísticos, com o atual modelo de contratação de artistas por obra.

“Não se pode exigir da moça que ganhou o BBB um desempenho digno de uma Elisabeth Savalla. E muito menos do rapaz que se tornou influenciador do TikTok um desempenho tão avassalador quanto o de um Tony Ramos”, diz, por email, o dramaturgo, criador das novelas “Vale Tudo” e “Senhora do Destino”.

“Esses atores eram grandes, e a televisão, infelizmente, está a ficar pequena. O grande erro da nossa TV foi não pensar no futuro e na formação de novos profissionais em se tratando de autores, atores e diretores.”

Também por email, a Globo enviou uma nota, em que nega uma mudança de perfil em seu elenco. Os critérios para a contratação, afirma a empresa, seguem os mesmos e levam em conta o talento, adequação ao papel e técnica dos candidatos.

“O que mudou foi o formato de contratação, que se ajustou às dinâmicas do mercado ao ampliar as possibilidades de contratos, por obra ou período. Esse modelo fomenta o mercado ao permitir mais flexibilidade a todos”, afirma um trecho da nota, que pode ser lida na íntegra no final da reportagem.

Mas basta ligar a TV para constatar que as novas produções da emissora têm menos artistas consagrados. Na própria “Família É Tudo”, poucos são os medalhões fora Arlete Salles. Às seis, Andrea Beltrão e Alexandre Nero orbitam ao redor de rostos novos, enquanto Marcos Palmeira, às nove, é a estrela solitária de “Renascer”.

É, afinal, um sintoma do modo como o mercado da teledramaturgia se articula nos dias atuais. As novelas da televisão aberta competem com produções do streaming, num cenário de pulverização da audiência —dados da Kantar Ibope mostram que a Globo perdeu mais da metade do público das novelas em 21 anos.

A Record adotou, há dois anos, o mesmo modelo de contratação por obra, buscando enxugar a folha de pagamento. Já o SBT decidiu, apenas no ano passado, enveredar pelo caminho da concorrência, incluindo no balaio apresentadores da casa, como Otaviano Costa e Dony de Nuccio.

“A Globo barateou muito o custo de produção e de elenco. Agora eles pagam menos, com uma ou outra exceção, então só fica quem aceita”, diz o galã Herson Capri, escalado para atuar em “Beleza Fatal”, da Max, a antiga HBO Max.

Para astros como Grazi Massafera, protagonista do remake de “Dona Beja”, da mesma plataforma, o cenário não é tão ruim. “É legal não ter o selo de ‘global’ e um contrato fixo e poder escolher o que vou fazer.”

Um empresário ligado a Globo afirma em condição de anonimato que as novas gerações de artistas constituem os seus salários pelo modo como lidam com as redes. Se antes os trabalhos em publicidade eram exibidos na própria TV, agora são as “publis” do Instagram que ditam a prosperidade do profissional.

No caso da Globo, o empresário afirma que, para ainda ter um contrato fixo com o canal, é preciso ter mais do que talento ou um rostinho bonito. Ser engajado em pautas sociais, por exemplo, conta pontos nesse sistema.

Ele diz ainda que as plataformas de streaming enfrentam dificuldades para atingir a excelência da linguagem do melodrama, que a Globo ajudou a definir. Afinal, o modelo da telenovela não deixa de ser um traço da cultura brasileira.

Desse modo, o que se evidencia não é o fim da novela —embora seu impacto seja menor agora—, mas a falência de um modelo importado dos Estados Unidos, que ganhou forma ainda no início do século 20.

Na época, estúdios de Hollywood, como a Warner Bros. e a Fox, se orgulhavam em ter em seus elencos fixos artistas como Charles Chaplin, Marilyn Monroe e Audrey Hepburn. O cenário mudou nos anos 1950, quando uma crise se instaurou no sistema, dando início ao processo de terceirização na produção dos filmes.

Com a falência, os atores foram demitidos das empresas. “Acaba a ideia de ver um filme de um estúdio específico pela presença de um determinado astro”, diz Rogério Ferraraz, professor de comunicação da Universidade Anhembi Morumbi.

Quando o modelo já estava em declínio, a Globo passou a adotá-lo —ditando o modo como as outras emissoras, como a Record e o SBT, empregariam seus artistas. Com o fim da TV Excelsior e as produções caseiras da TV Tupi, a Globo resolveu investir na contratação de um elenco de estrelas, constituindo, assim, uma Hollywood brasileira.

A materialização dessa iniciativa só se daria, nos anos 1990, com a criação do Projac, os atuais Estúdios Globo. “A Hollywood brasileira acabou com o surgimento do streaming e a pulverização da audiência”, diz Mauro Alencar, autor de “A Hollywood Brasileira: Panorama da Telenovela no Brasil”.

Nos anos 1960, a qualidade artística dos folhetins era assegurada porque os talentos que estavam na televisão eram, não raramente, grandes atores de teatro, como Paulo Autran. Segundo o especialista, a Globo utilizou diversas técnicas para que esses atores se tornassem ídolos.

Por exemplo, a emissora preparou a imagem de Sônia Braga, em diversos papéis, até que ela se tornasse uma estrela internacional. Em paralelo, os atores se ausentavam por mais de um ano das novelas, para que o público não se cansasse do rosto deles.

Já os autores —e suas criações— eram tratados como grifes. “Eles eram novelistas. Hoje são todos profissionais do audiovisual”, diz Alencar. “Os atores ficam exaustos. Não há mais tempo de se preparar um personagem. Acho muito improvável os atores e autores novatos terem a mesma importância que algumas pessoas tiveram no passado.”

Diante dos novos tempos, cada artista, entre a televisão aberta e o streaming, se salva como pode. “Foi ótimo, a minha geração e outras próximas viveram isso, mas sabíamos que os tempos estavam mudando. Fiz o meu pé de meia na Globo. Devo isso à empresa”, afirma a atriz Marieta Severo, em entrevista na ocasião do lançamento do filme “Domingo à Noite”.

Íntegra da nota da Globo sobre mudanças no elenco da emissora:

Não concordamos com a leitura. Os critérios e principais pilares para a escalação na Globo seguem os mesmos e levam em conta talento, adequação ao perfil do papel e técnica.

A mudança é no formato de contratação, que se ajustou às dinâmicas do mercado ao ampliar as possibilidades de contratos —por obra ou por período (prazo longo)—, de acordo com o planejamento de cada projeto.

Um modelo que fomenta o mercado audiovisual brasileiro, ao permitir mais possibilidades e flexibilidade a todos: à Globo, ao mercado e também aos profissionais. E que, em muito pouco tempo, já mostrou que funciona, com talentos que seguem em projetos recentes e de sucesso da emissora, já no novo formato.

A Globo sempre foi —e continuará sendo— um espaço aberto para novos talentos, onde muitos inclusive almejam estar. Segue acreditando que promover a troca de experiências ao combinar nomes consagrados do grande público e lançamentos é o melhor caminho.

Ao longo dos últimos anos, a Globo realizou um profundo planejamento de renovação e qualificação dos talentos, pesquisando novos profissionais em festivais, escolas de teatros, de roteiros e cinema, em diversas regiões do Brasil. Além de cursos, viagens, workshops e uma série de treinamentos criados para desenvolver e capacitar o elenco para as novas oportunidades e demandas do mercado audiovisual.

É assim, sendo cada vez mais um reflexo do Brasil em todas suas telas, com um olhar profundo para nossas vivências e sotaques, que a Globo segue no centro das conversas —gerando identificação e engajamento com o nosso público— seja no sofá da sala, no celular ou nas redes sociais.

GUILHERME LUIS E GUSTAVO ZEITEL / Folhapress

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