Como a Flip 2023 aposta na literatura das margens para seguir no centro dos olhares

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “A Flip nunca mais vai voltar a ser o que era antes”, assevera Mauro Munhoz, diretor artístico responsável pela festa. “Assim como o mundo nunca vai voltar ao que era na primeira década do século. E ainda bem.”

Salta aos olhos como a Festa Literária Internacional de Paraty virou uma criatura diferente nos 20 anos que separam a edição que começa nesta quarta-feira, seguindo até domingo, daquela que deu o pontapé inaugural em 31 de julho de 2003.

Hoje muito se ouvem reclamações -e o próprio Munhoz recebe muitas- sobre como se reduziu o investimento em autores internacionais de grande repercussão. Nos primeiros seis anos de festa, para citar uma lista breve, deram a graça no litoral fluminense gente como Toni Morrison, Neil Gaiman, J.M. Coetzee, Orhan Pamuk e Salman Rushdie.

“No começo foi super importante a gente ter trazido esses nomões, porque você ganha um lastro”, afirma o diretor. “Depois pode fazer ampliações de campo da literatura que, sem isso, não conseguiria fazer. As últimas Flips têm a ideia de explorar coisas que são mais difíceis, menos esperadas.”

Sem entrar no mérito da qualidade literária, hoje os convidados da programação principal, em especial os estrangeiros, são figuras menos conhecidas ainda em busca de ampliar -ou encontrar- seu leitorado brasileiro.

Algumas das apostas deste ano são a equatoriana Mónica Ojeda, que explora as angústias das mulheres jovens em ficções perturbadoras; a americana Christina Sharpe, que reflete sobre a revolução linguística operada pela cultura negra; a espanhola Alana Portero, tornada fenômeno editorial ao navegar a experiência trans nas periferias de Madri; e Akwaeke Emezi, romancista que foge aos gêneros binários e elabora narrativas de formação entre a Nigéria e os Estados Unidos.

O interesse da festa tem sido trazer ao centro das atenções as literaturas marginalizadas, oferecendo holofote e microfone a escritores vindos de todos os cantos, culturas antes ignoradas pelo cânone e editoras menores e mais aguerridas -quem acompanha a evolução da Flip se lembra das críticas constantes sobre o domínio absoluto de autores da Companhia das Letras.

É uma postura manifesta na homenagem a Patrícia Galvão, a Pagu, “revolucionária permanente das nossas letras e artes” e “luminosa agente subversiva da nossa modernidade”, para usar expressões diretas de Augusto de Campos, poeta que também será reverenciado -e insinua participar virtualmente- na programação e no show de abertura com Adriana Calcanhotto e Cid Campos.

Essa subversão vem se articulando há anos, tendo provocado uma reviravolta no perfil racial e de gênero dos autores e acentuando sua tônica na última edição, também sob curadoria da editora gaúcha Fernanda Bastos e da professora baiana Milena Britto.

“A Flip foi radicalizando suas possibilidades de polifonia”, afirma Bastos, sublinhando que festivais representativos devem romper com a restrição da literatura “a um mesmo grupo editorial ou grupo de amigos”. “Será que para ser um grande nome, você tem que seguir pré-requisitos de mercado?”

“É claro que a instituição Flip tem expectativa de entrada na mídia, preocupação com patrocínio e público, e o público quer algo que justifique pagar a passagem até Paraty”, afirma Britto. “Mas quando chamamos Annie Ernaux, ela era restrita a bolhas, e um mês e meio depois, era Nobel. Às vezes nosso olhar nos engessa.”

A edição passada, quando a francesa octogenária se equilibrou nas pedras de Paraty, foi um momento algo catártico de retorno presencial à cidade após duas edições virtuais motivadas por uma pandemia que descarrilou os planos de todos, com efeitos sentidos até hoje.

A cidade só recebe sua segunda Flip no calorão de novembro por uma mistura do desarranjo do coronavírus, que empurrou pela primeira vez a festa ao final do ano em 2020, e da dificuldade em captar recursos com previsibilidade suficiente para antecipar a organização.

A direção da festa sempre viu essa data como problemática -além do inconveniente para o turismo local, que não tem mais sua economia aquecida em julho, causa desistências numerosas de escritores estrangeiros que teriam disponibilidade maior durante as férias de julho.

Para citar só um exemplo doméstico, Caetano Veloso ouviu animado um convite para integrar esta edição, mas não conseguiu conciliar com sua agenda apertada de apresentações em novembro.

Parece, no entanto, que surgiu luz no fim do túnel. “Acabou de ser aprovado em definitivo o nosso plano plurianual de captação”, relata Munhoz. “Pela primeira vez, nós temos quatro anos de Lei Rouanet.”

Ou seja, em vez de sair em busca de recursos do zero todo ano, às vezes descobrindo o orçamento disponível “aos 45 minutos do segundo tempo” -nesta edição foram R$ 9 milhões- a festa ganha um horizonte de mais longo prazo para se planejar. Ainda falta, contudo, conseguir patrocinadores que executem esse investimento plurianual.

O efeito por ora é que há mais segurança institucional, beneficiada por ouvidos mais simpáticos no governo federal do que na era Bolsonaro. Se a Flip ainda não deve voltar a julho em 2024 -até porque concorreria com as Olimpíadas de Paris-, Munhoz joga no ar a ideia de setembro.

Uma Flip tardia encontra hoje desafios maiores. Muito puxados pelo exemplo paratiense, surgiram pelo Brasil festivais literários com verba e curadoria robusta espalhados por várias regiões, da Bahia a Santa Catarina, de São Paulo a Minas Gerais. Assim, a seleção nacional arrisca repetir muitas figuras já vistas antes em outras cidades charmosas.

Mesmo assim, a aposta nos brasileiros é contundente -dos baianos Carla Akotirene e Itamar Vieira Junior às gaúchas Angélica Freitas e Eliane Marques; das cariocas Bruna Beber e Flora Süssekind aos paulistas Natalia Timerman e José Henrique Bortoluci; passando por insígnias do pensamento ancestral como Leda Maria Martins e Glicéria Tupinambá.

Munhoz afirma não enxergar competição entre festivais porque cultura não é algo finito. “Quanto mais territórios você abre, mais espaço há.”

Mas é preciso pensar o que mantém a Flip, num contexto assim, tão relevante quanto sempre foi -o que passa pelo ambiente de efervescência cultural que torna a cidade epicentro do amor pela literatura e da reflexão intelectual.

Isso tem a ver com sua cada vez mais extensa programação paralela gratuita -a principal custa R$ 130, mas pode ser acompanhada sem pagar no telão ou na internet.

O cardápio da cidade inclui a Casa Folha, organizada pelo jornal todos os anos e que, entre quinta e domingo, trará convidados como Bernardo Carvalho, Eliana Alves Cruz, Sidarta Ribeiro, Tati Bernardi e Vera Iaconelli.

Nesse movimento, que a festa tem incentivado, também há a radicalidade pujante da Flipei, onde falará a italiana Silvia Federici, referência feminista de alcance global; e organizações vigorosas de editoras independentes como a Casa Gueto, a Casa Paratodos e a nova Casa Sete Selos.

“Os grandes nomes que puxam a atenção são relevantes, mas a magia da Flip é o conjunto”, aponta Bastos. “Nem sempre o que o mercado ou o público diz que quer é o que ele realmente quer.”

21ª FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATY

Quando De qua. (22) a sáb. (25), das 10h às 23h, com mesa de abertura na qua. às 19h; dom. (26), das 10h às 16h

Onde Centro Histórico de Paraty, no Rio de Janeiro

Preço Ingressos a R$ 130 por mesa; debates podem ser vistos de graça no telão e nos canais virtuais da Flip

WALTER PORTO / Folhapress

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