Como Adam Driver reconta a vida de Enzo Ferrari entre o luto e a obsessão em filme

VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – O empresário Enzo Ferrari era um perfeccionista. Começou a carreira como piloto de automobilismo, mas as vitórias na pista não eram suficientes. Decidiu criar uma marca própria de carros e elevar outros pilotos à condição de campeões, criando a Ferrari, sinônimo de luxo nos automóveis de passeio e de eficiência nos autódromos.

Foi esse traço de personalidade que tanto fascinou o cineasta Michael Mann, que não fica muito atrás em termos de meticulosidade. Ele, aliás, passou mais de 20 anos com a ideia de fazer um filme sobre Ferrari, o que finalmente conseguiu agora.

Conhecido pela eficiência técnica e a maneira como emprega uma marca autoral a seus filmes, como em “O Último dos Moicanos”, de 1992, e “Miami Vice”, de 2006, Mann não poderia encontrar um ator para a empreitada que não fosse, como ele e Ferrari, igualmente um amante da perfeição.

Não havia alguém melhor do que Adam Driver, ator que adora mostrar sua capacidade de adaptação e de comprometimento aos seus personagens em filmes tão distintos, como “Silêncio”, de 2016, “História de um Casamento”, de 2019, e “Annette”, de 2021.

“Não sei qual de nós é o mais perfeccionista. Acredito que os três somos meio malucos”, diz Driver, sorrindo, a este repórter, no Festival de Veneza, em setembro.

Apesar de a greve dos roteiristas e dos atores de Hollywood estar a pleno vapor durante o evento, Driver tinha autorização para divulgar o filme, que não foi produzido pelos grandes estúdios e distribuidores que desafiavam os grevistas.

Mann, aliás, tem atuado um tanto fora do sistema. Apesar de ser respeitado pela crítica e cobiçado por celebridades, “Ferrari” é a primeira produção do cineasta de 81 anos desde “Hacker”, de 2015, com Chris Hemsworth —detonado pela crítica e que, com o tempo, virou cult.

“Não sei se consideraria o filme como uma obra perfeccionista, porque esse é um termo que vem associado à ideia de algo tedioso, chato, e o filme não é assim. Eu tinha uma visão sobre o que queria fazer, assim como Michael tinha a dele. Quando há uma sincronia entre visões distintas, é porque a coisa está funcionando bem, o que é raro.”

O filme se passa em 1957, quando Ferrari enfrenta problemas pessoais. A morte recente do filho, que o traumatizava, parecia a pá de cal no casamento com Laura, vivida por Penélope Cruz, o que o leva para uma relação com uma amante bem mais nova, Lina, papel de Shailene Woodley. A conta bancária também vai mal, com a Ferrari diante de uma enorme crise financeira.

Para completar, a busca por bons resultados de Enzo em sua escuderia havia incorrido em negligência com a segurança dos pilotos, levando à morte um deles, o espanhol Alfonso del Portago —vivido pelo brasileiro Gabriel Leone, em sua estreia internacional. A tragédia durante a corrida Mille Miglia daquele ano matou também um assistente e nove espectadores, inclusive crianças.

Para dar vida a um homem que tinha 20 anos a mais que ele, Driver surge com madeixas grisalhas, mais curtas e penteadas do que as do visual cabeludinho com o qual o público está habituado. Ele diz que estudou o que pôde sobre Enzo Ferrari, mas que tentou se parecer com o empresário só dentro do possível.

“Houve um cuidado com mudanças físicas. Ele se movia de uma maneira muito diferente de como eu me movimento, falava de um modo diferente, e até a maneira como reagia a uma tragédia. Para ele, viver o luto era quase inadmissível”, diz o ator. “O temperamento dele vinha muito de uma mentalidade de disputa e das corridas, que o faziam estar sempre absolutamente centrado.”

Enzo morreu em 1988, aos 90 anos, e conhecer seu filho com Lina, Piero, hoje com 78 anos, foi de grande auxílio para o ator. Mas foi mesmo o diretor a principal fonte de informações nos instantes de dúvida sobre o personagem.

“Piero está lúcido, foi muito receptivo e generoso para me ajudar, ainda que a partir da sua própria perspectiva. Ele me permitiu ter contato com objetos —relógios, gravatas, ternos, a agenda de compromissos de Enzo, a pasta que ele carregava. Essas coisas foram muito úteis”, conta Driver.

Gabriel Leone também diz que o suporte de Mann foi fundamental na sua estreia estrangeira, ainda que o método de filmagem fosse por vezes cansativo. “Ele tem um processo de filmar que envolve repetir muito as tomadas, porque vai escavando em busca de algo além do que já está escrito ou do que imaginou. É um artista muito inquieto”, diz o ator.

Curiosamente, o carioca poderá ser visto em breve na pele de outro automobilista morto em ação, embora eterno rival da Ferrari. Ele viverá Ayrton Senna na série “Senna”, da Netflix. “A única relação entre Portago e Senna é que ambos eram competidores”, diz Leone. “Portago era muito mais um aventureiro do que propriamente um piloto talentoso, o que é totalmente diferente do Senna, que foi o maior de todos.”

A oportunidade chegou ao brasileiro pelo produtor Rodrigo Teixeira, que apresentou Leone a um agente. O diretor buscava um ator com ares de um amante latino. O brasileiro enviou um vídeo e, uma semana depois, teve uma conversa pela internet com Mann, que se convenceu.

Mann parece de fato ver no carioca uma grande aposta, não só por permitir uma estreia com um personagem importante, mas por explorar o seu potencial de galã. Além de, em cena, ter sempre valorizado seu aspecto de Marlon Brando —que na década de 1950 era um símbolo comportamental para os jovens de todo o mundo—, Leone aparece numa breve cena de sexo, com direito a “derrière”, sua bunda, à mostra.

“A cena sempre esteve no roteiro e foi super tranquila de fazer. Não foi o primeiro nu que fiz. O diretor queria mostrar um lado do meu personagem, que era o de uma pessoa cheia de amor para dar, cheia de vida e de energia, em contraponto ao que acontece com ele ao longo do filme”, diz Leone.

Já Adam Driver está de terno o tempo todo, mas seu personagem também tem bastante energia sexual. Aliás, Enzo, como bom italiano machão da década de 1950, tem um pronunciado sexismo —mal escondia da mulher que tinha uma amante, apesar de esconder a todo custo o filho Piero, que tinha fora do casamento.

Mas o filme injeta algo dos tempos atuais na forma como retrata Laura, que nunca se deixa diminuir diante do marido. “Não foi uma personagem escrita para atender demandas, mas para honrar quem era aquela mulher. Mesmo que ela esteja esperando pelo marido em casa, ela ainda tem sua própria autoridade”, diz Driver.

Cruz esteve cotada para uma vaga no Oscar de atriz coadjuvante, mas, apesar de críticas positivas à sua atuação, parece ter faltado combustível. O filme passou em branco em toda a temporada de premiações em curso em Hollywood.

FERRARI

– Quando Estreia em 22 de fevereiro

– Onde Nos cinemas

– Classificação 16 anos

– Elenco Adam Driver, Gabriel Leone, Penélope Cruz

– Produção Estados Unidos, 2023

– Direção Michael Mann

BRUNO GHETTI / Folhapress

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