RIO DE JANEIRO, RJ (UOL/FOLHAPRESS) – Um morto, 17 feridos e imagens impactantes de violência que chocaram o país no dia 27 de outubro. A emboscada da Mancha Verde, do Palmeiras, na Máfia Azul, do Cruzeiro, na rodovia Fernão Dias, tem como reflexo as alianças firmadas entre organizadas que possuem ramificações por todo o Brasil.
Numa geografia complexa, as torcidas estão subdividas em grupos de apoio que oferecem recepção, escolta, estratégias de enfrentamento e logísticas de emboscadas nas estradas.
Os mais conhecidos atendem pelos nomes de Punho Cruzado, Dedo Pro Alto, Punho Cerrado e Punho Colado, numa alusão direta ao gestual que os identifica na “pista” e em seus uniformes.
“Essa rixa da Máfia Azul com a Mancha Verde tem a ver com essa divisão dos anos 80. Obviamente que, nessa época, não existiam esses termos de Dedo Pro Alto, Punho Cruzado… O Punho Cruzado já existia nos anos 90, mas isso foi sendo estilizado e aprofundado na sequência. São termos mais contemporâneos”, diz Bernardo Buarque de Hollanda, professor, sociólogo e pesquisador de cultura de arquibancada.
MÁFIA AZUL É PUNHO CRUZADO; MANCHA VERDE É DEDO PRO ALTO
A Máfia Azul, do Cruzeiro, pertence à aliança “Punho Cruzado”, a primeira que surgiu com a proposta de unir organizadas de clubes diferentes. O grupo teve os primeiros pactos em meados dos anos 80, pouco após o rompimento de amizade entre as torcidas de Corinthians e Flamengo.
Foi com a chegada dos são-paulinos da Independente no lugar dos corintianos que a ideologia foi se disseminando e ganhando mais adeptos, se expandindo para outras divisas regionais.
“Peguei a faixa da Independente, fui sozinho para o Maracanã e fiquei no lado da torcida do Flamengo. O outro lado era do Vasco. O pessoal da Jovem Fla já estava vendo na televisão o que estávamos fazendo com a torcida do Palmeiras e falaram: ‘O Adamastor é o cara que está batendo de frente com eles’, então me convidaram para ficar com eles. Fizemos primeiro uma amizade pessoal, e essa amizade se estendeu para a aliança das torcidas”, disse Adamastor, ex-presidente da Independente, em entrevista ao UOL em 2023.
A Mancha Verde, vendo essa movimentação no tabuleiro e ficando cada vez mais exposta tanto em São Paulo quanto no Rio, se aproximou da Força Jovem do Vasco também na década de 80. Dali em diante elas passam a defender umas as outras, absorvem a Galoucura (Atlético-MG) e encabeçam a aliança que, atualmente, se apresenta como a mais coesa e com mais adeptos: a “Dedo Pro Alto”, nome que surgiu com um gestual ofensivo e provocativo aos simpatizantes do Punho Cruzado.
“Houve uma segmentação ordenada e um alinhamento automático entre a Mancha Verde, a Galoucura e a Força Jovem do Vasco. Esse alinhamento perdura desde então”, afirma Bernardo.
PUNHO CRUZADO SOFREU DESENTENDIMENTOS INTERNOS
Ao longo dos anos a aliança Punho Cruzado sofreu desentendimentos e uma construção mais confusa que a Dedo Pro Alto. A Jovem Fla, por exemplo, teve problemas com a Máfia Azul.
Outra organizada do Flamengo, a Raça Rubro-Negra não faz parte e por diversas vezes brigou com integrantes deste grupo. Ela lidera uma terceira via, chamada “Punho Cerrado”, com braços em torcidas do Athletico-PR, Fortaleza e Vitória, entre outros.
“Durante um certo momento, essas relações bilaterais foram ficando muito confusas. A Raça Rubro-Negra brigava com a Independente, que por sua vez era aliada da Jovem Fla. Havia brigas entre torcedores do mesmo time. A Máfia Azul brigou com a Jovem Fla, que se alinhou com a Pavilhão Independente, do Cruzeiro. Tiveram algumas oscilações, ao passo que a Dedo Pro Alto manteve essa espinha dorsal da Mancha, Força Jovem e Galoucura. No cômpito geral, ela tem passado ilesa nessas quatro décadas, ao passo que a Punho Cruzado oscilou mais”, diz Bernardo.
BRIGA EM 88 FOI ESTOPIM DA GUERRA MANCHA X MÁFIA
Bernardo Buarque aponta uma briga no Campeonato Brasileiro de 1988, em jogo entre Palmeiras e Cruzeiro, no antigo Parque Antárctica (SP), como estopim para a guerra entre elas.
Na semana anterior, o então presidente e fundador da Mancha Verde, Cléo Sóstenes Dantas da Silva, foi assassinado num crime até neste sábado (16) não desvendado. A organizada palmeirense, naquela partida, prestava homenagens ao seu líder e foi provocada pelos cruzeirenses, que se encontravam no setor de visitantes, dando início a um tumulto de grandes proporções na arquibancada.
“A Mancha fez um foguetório para homenagear o Cléo. E o setor do Cruzeiro começou a estender uma faixa e fazer provocação: ‘o Cléo morreu, a Mancha se f*’. Imediatamente, começaram as cenas de invasão. Não havia ainda cadeiras, alambrado. O policiamento fazia uma linha divisória, mas não conseguia conter. As cenas da Mancha inteira correndo para o setor da Máfia Azul foram impactantes. Foi uma briga muito feia”, afirma Bernardo.
ORGANIZADAS DE CORINTHIANS E SANTOS NÃO FAZEM PARTE DESTES GRUPOS
A Gaviões da Fiel, do Corinthians, e a Torcida Jovem, do Santos, não fazem parte destes grandes grupos de alianças por ideologias próprias.
Os corintianos têm um pacto de amizade com a Fúria Jovem, do Botafogo, e com torcidas menores, como a Remoçada, do Remo, e a Gaviões, do Figueirense. Não há, porém, uma coesão significativa entre elas, nem uma nomenclatura que as identifiquem.
Os santistas possuem uma aproximação com a aliança Punho Colado, que tem como principal liderança a Young Flu, do Fluminense, mas apesar do respeito, não se consideram integrantes do grupo.
NORDESTE TEM DIVISÃO PRÓPRIA
As organizadas do Nordeste também possuem uma subdivisão própria e interna. Elas são separadas pelas nomenclaturas “Lado A” e “Lado B” e têm o mesmo modus operandi que se aplica aos grupos de território nacional.
O Lado A é composto por organizadas de: Bahia, Fortaleza, Santa Cruz, CSA, América-RN, Confiança, entre outras.
Já o Lado B tem torcidas de: Ceará, Náutico, CRB, ABC, Botafogo-PB, Sampaio Corrêa, entre outras.
30 MORTES ORIUNDAS DE VIOLÊNCIA FÍSICA DE TORCIDAS EM 2023
O Observatório Social do Futebol divulgou seu relatório sobre os números da violência entre as torcidas em 2023. Segundo o levantamento, 30 mortes ocorreram ano passado, o que corresponde a 18,9% dos casos de violência física. Destes óbitos, 12 foram oriundos de armas de fogo.
Ainda de acordo com o relatório, o segundo conflito que mais ocorreu foi entre torcidas e forças de segurança, algo que jogou holofote sobre a possibilidade de abusos policiais.
O Observatório ainda destaca que quase 40% dos caos de violência aconteceram nos arredores dos estádios, num raio de até 5 km. Mais de 30% foram longe do local da partida. Somente pouco mais de 20% aconteceu dentro da praça esportiva.
Há ainda um mapa que aponta as regiões dos episódios e evidencia que estados que adotaram o modelo de torcida única estão entre os que tiveram mais casos de violência, o que faz a organização questionar a eficácia desta política.
FRENTE PARLAMENTAR É CRIADA PARA DIALOGAR COM ORGANIZADAS
A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) criou, na última terça-feira (12), a “Frente Parlamentar de Diálogo com as Torcidas Organizadas em favor da Paz nos Estádios e Eventos Esportivos”. A iniciativa partiu da deputada estadual Zeidan (PT-RJ) em parceria com a Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg). A ideia é entender as necessidades e criar mecanismos para desenvolver projetos e combater a violência e qualquer tipo de discriminação.
BRUNO BRAZ / Folhapress