SAN SALVADOR, EL SALVADOR (FOLHAPRESS) – Nayib Bukele, que declarou a própria reeleição à Presidência em El Salvador neste domingo (4) após pesquisas de boca de urna o colocarem à frente com 87% das intenções de voto, ganhou fama nos últimos anos como ícone da direita da América Latina. Sua carreira política teve início, porém, em um partido de esquerda, nascido de uma guerrilha.
Seu pai, o empresário e comentarista de televisão Armando Bukele, tinha proximidade com líderes da FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional), grupo que deixou as armas para se tornar uma legenda oficial depois do fim da guerra, em 1992. Foi assumindo campanhas da sigla enquanto diretor de uma agência de publicidade que ele começou a se interessar pela área.
Foi, assim, pela FMLN, que ele conseguiu, em 2012, a prefeitura de Nuevo Cuscatlán, uma cidade de 6.000 habitantes nos arredores da capital, San Salvador. A campanha do que seria sua estreia na política tinha pouca relação com a identidade visual da sigla esquerdista –já naquela época ele usava o azul celeste nos materiais de propaganda, uma cor que ainda aparece em diversas obras públicas do município.
O segundo degrau rumo ao Executivo federal foi a conquista da prefeitura de San Salvador, em 2015. Para chegar à Presidência em 2019, porém, Bukele precisou romper com o partido, que tinha planos de lançar outro membro como candidato. A aposta da legenda tradicional de esquerda não se provou forte o suficiente, e naquele ano, Bukele se tornou um dos líderes mais jovens do mundo ao ganhar as eleições, aos 37 anos.
Embora tenha migrado para a direita, o bukelismo não se define por isso, segundo Amparo Marroquín, pesquisadora de comunicação política no Conselho Latino-americano de Ciências Sociais.
“Bukele diria que esquerda e direita são preocupações de gente velha. Nesse sentido, temos que pensar no bukelismo como muitas vezes pensamos no peronismo, por exemplo”, afirma ela. A corrente política argentina abarca desde políticos como Carlos Menem, cuja gestão na Presidência foi marcada por privatizações, até o estatizante Néstor Kirchner, também ex-presidente.
“É um populismo muito mais amplo, o que não nos impede de constatar que ele atualmente esteja cada vez mais à direita.”
Se as pesquisas se confirmarem, Bukele, 42, será reeleito. Mesmo que o pleito em questão esteja repleto de suspeitas de irregularidades, a começar pela própria recondução ao cargo, vetada pela Constituição salvadorenha.
Esta não é, porém, a única polêmica que o líder carrega –ao longo de seu mandato, o governo foi suspeito de negociar com as gangues do país e de obstruir investigações.
Bukele nasceu na capital em 1981. Sua família é formada por migrantes palestinos que chegaram ao país centro-americano no início do século 20 e se depararam com uma nação que, em 1933, sob a gestão do ditador Maximiliano Hernández Martínez, chegou a proibir a entrada de negros, asiáticos e árabes.
Uma das atitudes mais controversas da sua Presidência aconteceu em um domingo de fevereiro de 2020. Naquele dia, os 28 dos 84 deputados da Assembleia Nacional de El Salvador que entraram no prédio do Legislativo do país encontraram o plenário rodeado por militares e policiais fortemente armados.
A cena havia sido montada pelo presidente. Na ocasião, o político tentava aprovar um pacote de segurança que tinha poucos detalhes e um objetivo genérico –combater as gangues que faziam o país figurar entre os mais violentos do mundo.
Bukele entrou no prédio pouco antes das 17h, caminhou até a mesa diretiva da Assembleia e se sentou na cadeira reservada ao presidente do órgão. “Agora acho que está muito claro quem tem o controle da situação”, afirmou a parlamentares estupefatos com o espetáculo.
Do lado de fora, milhares de apoiadores se agitavam com a intimidação que o político promovia contra o convalescido Legislativo do país, dominado pelas siglas que ele derrotara nas urnas um ano antes.
O jeito marqueteiro de Bukele já é conhecido daqueles que acompanham um pouco mais de perto a política do pequeno país centro-americano que é El Salvador. Nos últimos anos, ele anunciou a criação de uma “Cidade Bitcoin”, a ser financiada por títulos da criptomoeda de curso legal no país; construiu um dos maiores centros penais do mundo para a sua guerra contra grupos criminosos; e atraiu grandes eventos para o país, como o Miss Universo do ano passado.
“Ele consegue vender um projeto que parece uma ficção científica, um futuro utópico maravilhoso”, afirma Marroquín. “Lembremos que a ideia do bitcoin nasceu inicialmente como uma proposta que quebraria o mercado tradicional e permitiria outro fluxo de capital. Se pensarmos nisso como política de comunicação, não como política econômica, funciona muito bem.”
Mesmo o ato na Assembleia foi apenas bravata. Bukele não aprovou o pacote irregularmente. Ao mesmo tempo, a performance serviu para testar os limites da sociedade civil ante seus avanços contra instituições democráticas e, convenientemente, desmoralizou o Legislativo.
No ano seguinte, em 2021, os deputados já não eram mais um problema. As eleições deram a ele a Assembleia e, consequentemente, a Procuradoria-Geral e a Corte Constitucional, reorganizadas a seu gosto.
Para uma parte do mundo, aquela foi a primeira vez que o verniz de “presidente mais ‘cool’ do mundo”, como ele mesmo se denominou, foi retirado. Antes, via de regra, ele costumava ser mencionado por ações bem menos alarmantes, ainda que incomuns –como a de interromper seu primeiro discurso na Assembleia-Geral da ONU, em 2019, para tirar uma selfie e publicá-la nas redes sociais.
A comunicação é central em sua gestão. O governo fundou um jornal impresso que exalta seus próprios feitos e, nas redes sociais, conta com uma rede de apoiadores cuja estridência é capaz de encobrir críticas -em 2022, a agência de notícias Reuters falou com três pessoas que, sob condição de anonimato, disseram ter sido contratadas pela Secretaria de Comunicações de El Salvador para elogiar as políticas do governo nas plataformas e insultar opositores.
Muitos dos alvos desses apoiadores nas redes sociais são jornalistas que, nos últimos anos, revelaram suspeitas de que o governo tratou com as chamadas pandilhas, gangues criminosas do país, para diminuir o número de homicídios.
Em 2022, o jornal El Faro publicou evidências de que Carlos Marroquín, funcionário do Ministério da Justiça do país, estava negociando a redução de assassinatos no país com a MS-13, um dos principais grupos criminosos salvadorenhos, antes da onda de violência que levou o governo a lançar a guerra contra as facções.
Em áudios, o membro do governo dizia ter tirado da prisão o líder pandilheiro Elmer Canales Rivera, conhecido como Crook e, na época, alvo de um pedido de extradição do governo americano, para demonstrar “lealdade e confiança” ao grupo.
Em agosto do mesmo ano, um tribunal federal de Nova York acusou Carlos Marroquín e Osiris Luna, diretor-geral do sistema carcerário, de negociar com as gangues em troca de benefícios.
O escândalo não impediu Bukele de manter sua retórica punitivista no que se refere à segurança pública –pelo contrário. “Depois de cinco anos de gestão, ele fala cada vez menos das preocupações da população e adotou um discurso mais semelhante ao de seus antecessores, em que as gangues desempenham um papel muito importante”, diz Amparo Marroquín, a pesquisadora.
“Na América Central, falar sobre gangues e espalhar o medo pela sociedade permite ganhar eleições e manter a popularidade.”
DANIELA ARCANJO / Folhapress