Como Cecilia Vicuña faz arte feminista e ancestral para revolucionar o mundo

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Vestindo um xale violeta sobre os ombros, Cecília Vicuña chegou a São Paulo no único dia frio em meio a uma onda de calor incomum para o mês de maio. “Encontrei formigas pequenininhas assim”, diz, aproximando os dedos indicadores para representar as criaturinhas avistadas no hotel. Ela prefere fechar a janela para proteger o corpo franzino do vento.

“Isso não se decide, acontece”, afirma a artista e poeta, sem titubear, sobre a abordagem da natureza em suas obras —e de sua destruição pelo nosso sistema econômico. Vencedora do Leão de Ouro na Bienal de Veneza de 2022 por mais de meio século de carreira, a chilena “já era velhinha”, em suas palavras, quando se tornou uma estrela do circuito artístico mundial, em meados de 2018.

De pinturas que misturam pautas feministas e socialismo à série “Precários”, esculturas feitas com pedras, plásticos, madeiras e fios encontrados ao ar livre, a Pinacoteca exibe pela primeira vez o conjunto da obra de Vicuña no Brasil, pouco após ter feito o mesmo com a expoente da pop art na América Latina, Marta Minujín.

Entre os trabalhos expostos estão os “Quipus”, instalações feitas com longas tiras de tecido, ramos e outros materiais que reinterpretam o sistema andino de nós, usado pelos incas, por exemplo, para registrar histórias, contas e cantos —quase como uma espécie de código ou escrita.

O seu mais conhecido é, talvez, o “Quipu Womb”, em que enormes tiras grossas de tecido vermelho descem pelo teto em alusão ao sangue das antigas matriarcas.

Vicuña passou a infância no mundo silvestre, correndo pelo verde de bosques e fazendas. Sua mãe, de descendência indígena, costumava conversar com os animais, as plantas, a chuva e o céu, até que a família se mudou para Santiago —e ela, ainda menina, percebeu que vivia em outro mundo. “Compreendi que a liberação do sofrimento pela exploração e o fazer artístico são uma coisa só”, diz, antes de ajeitar os longos cabelos grisalhos.

Na adolescência, lia assiduamente o quadrinho “Leyendas de América”, produzido no México e exportado para o Chile, que contava histórias épicas pré-colombianas. Foi numa enciclopédia de arte da tia, impressa em Oxford, que viu o quiput. “Não era um objeto arqueológico, mas um conceito que me tomou”, diz.

Difícil não lembrar do manto tupinambá que volta ao Brasil neste ano após ser reivindicado por indígenas como uma entidade, mais do que um simples objeto.

Se a arte indígena está dominando museus e galerias pelo mundo, é porque os movimentos indígenas precisaram se fortalecer nas últimas décadas diante da ameaça de extermínio, argumenta. Crianças deixaram as aldeias rumo as cidades para estudar e ocupar cadeiras em universidades, congressos e ateliês.

“Os jovens artistas e curadores do hemisfério norte estão em aliança com as comunidades marginalizadas, hoje chamas de sul global”, diz. Prova disso, segundo ela, são as ações de solidariedade com a Palestina em exposições pelo mundo, entre elas uma grande manifestação na última Bienal de Veneza.

Mas nem sempre foi assim, Vicuña lembra bem. Em 1973, quando precisou sair às pressas do Chile após o golpe militar liderado por Augusto Pinochet, artistas chilenos de classe média alto passaram a estudar arte nos “moldes americanos”, linguagem que se internacionalizou. “Foi uma espécie de praga, todos tinham que fazer coisas parecidas. Se intensificou a colonização mental na cultura. Agora me parece que há uma busca, outra vez, por linguagens próprias”, diz.

A resposta foi a radicalização dos artistas do campo oposto, em seu caso, revelada na pintura. Um retrato seu de Karl Marx em que pessoas fazem sexo ao fundo no meio de uma floresta, de 1972, foi recentemente adquirido pelo Guggenheim, em Nova York.

Por ironia do destino, Vicuña foi parar no coração dos Estados Unidos pouco depois. Se mudou para Nova York na década de 1980, onde encontrou uma cidade ainda pulsante pelas vanguardas que a eriçavam desde 1940, com os beatniks, até as manifestações LGBTQIA+ e feministas pela liberação sexual daquela década.

Junto da poesia e ancestralidade, o feminismo é outro tema recorrente em sua obra, ainda que o movimento de hoje seja muito diferente daquele que ela viveu na juventude. “O feminismo de hoje é muito mais integrador de outras forças, e é necessário que seja assim. É uma questão de vida ou morte. Não basta buscar a libertação das mulheres, mas derrubar um sistema que já não serve.”

Ela ainda lembra da emoção que sentiu na abertura da Documenta de Kassel em 2017, quando viu pela primeira vez na vida —já com 69 anos— uma grande exposição que reunisse obras de mulheres do sul global. “Eu vi Beatriz Gonzalez, vi Marta Minujin. Todas tínhamos em comum essa história de marginalização nos nossos países. Essa história é universal”, diz.

Algo parecido aconteceu na mostra “Mulheres Radicais”, em Los Angeles, que provocou para a revisão da história da arte sob uma perspectiva feminina, e na própria Bienal de 2022, quando a curadora Cecilia Alemani uniu artistas do mundo todo sob a premissa surrealista de Leonora Carrington. Mas, para além do gênero, Vicuña acredita que a arte dessas mulheres ecoa pelo que tem a mostrar.

“Quase todas elas são intensamente politicas e exploradoras de seu corpo, de seu ser e sua realidade”, diz. Provocam, com seus trabalhos finalmente exibidos do MoMa ao Pompidou, disputados por galerias afora. Desde sempre elas estão abordando questões relativas ao corpo e a natureza, que antes não interessavam como hoje.

Para ela, a arte não deve denunciar, mas demonstrar que outras formas de pensar, sentir e viver são possíveis. Hoje, a politização se orienta pela ecologia diante da catástrofe ambiental. “Já não temos tempo”, alerta.

CECÍLIA VICUNÃ: SONHAR A ÁGUA – UMA RETROSPECTIVA DE FUTURO

Quando De quarta a segunda, das 10h às 18h. Até 15 de setembro

Onde Pina Contemporânea – av. Tiradentes, 273, São Paulo

Preço R$ 30. Grátis aos sábados

ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress

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